O MAIS ESCURO DE MIM
O MAIS ESCURO DE MIM
eu agora falo comigo sem máscaras, com o mais íntimo, com o mais escuro e pequeno e sujo e profano de mim-eu, talvez nem isso mas sim do mais sagrado, aquilo que de tão indefinível não tem limite. do meu eu-ser. do meu ser-que-não-é porque eu talvez ainda não tenha deixado.
eu escrevo agora um conto sem fim. isso é só o começo...
quem faz perguntas a si mesmo á sério? digo, perguntando de si para si, pra ouvir a voz que há atrás das personagens que criamos, ainda que agora eu fale de mim e assim falo de todos na medida que eu sou todos, porque digo máscara que eu tenho e máscara que visto, que visto pra vestir a máscara. o ser triste e sozinho que eu sou é aquilo que está escondido, não falo de pieguice, melhor seria dizer de crimes, ou talvez seja a coisa que crie em mim a vontade de liberdade.
a coisa objeto sem nome sem fim
por isso é preciso beber um pouco de liberdade, se lambuzar em sua maresia, se afogar, se embriagar até cair de liberdade, até vomitar palavrões imorais. a liberdade essa que nos trás a vergonha, porque é verdadeira.
liberdade de mim mesmo, do medo que só pertence a mim e que nasceu comigo no primeiro lampejo de consciência, o medo que não me deixa aliviar o peso de perdoar o que nem sei que condenei, quando eu é que me condeno em tudo que desaprovo.
liberdade ainda também do comprometimento de ser livre, porque os porquês se multiplicam na dimensão exata do desconhecido que me virá amanhã, do medo do amanhã quando se torna hoje e não dá pra fugir pro amanhã que é inútil, que não começa e não termina porque se confunde nesse presente com o passado; e o medo do passado ainda que seja todo eu, o eu integral do que me escondo propondo novos rumos que vão dar sempre no mesmo lugar, o buraco de Alice.
olho para mim. estas mãos tão antigas, tão companheiras, laborais e cúmplices, porque participaram de todos os crimes, e estes olhos que todo mundo elogia, que não aguentam a luz da lanterna da verdade; quem não já piscou seu olho quando viu a luz?
e eu que tenho visto a luz e fingido para mim mesmo que estou cego, que arranquei meus olhos como Édipo, e que me tenho feito uma personagem grega oculta sob um pacto freudiano (ou lacaniano, como alguns preferem).
mas o que tenho visto senão só a mim mesmo no troco errado, na omissão daquela palavra, no sonho que eu não contei porque não cabia em baixo de nenhum tapete?
aí eu fujo para a praia, e o mar me distrai um pouco, o suficiente, contudo pra me esconder por instantes luminosos onde não me sinto obrigado a ser. é um momento tão frágil, como uma bolha de sabão multicor que se esboroa no contorno do fim do dia, entre uma tarde e uma noite em não penso em minha tristeza, em que não vejo nos olhos a minha solidão (como se fosse possível).
neste momento sim, eu sou possível, e só nele eu sou possível e nu.
é preciso perdoar deus, é preciso deixar essa grande pedra e prosseguir como um pássaro de fogo até as alturas, mas antes de tudo, é preciso deixar de ser réstia de luz que bruxuleia amarela e medrosa.
é preciso deixar de ser tudo que sou pra não ser, aí, e só aí serei o eu sou, e poderei fitar meus olhos líquidos sem usar qualquer espelho...
é preciso tanta coisa...
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