O morro do adeus

Era mais um dia como outro qualquer... No entanto, tinha o pressentimento de que algo novo iria acontecer. Todos os dias, ao sair de casa rumo à feira onde vendia doces, ela sonhava com o dia em que não precisaria mais levantar de madrugada, enfrentar o burburinho da feira e o cansaço do dia que se arrastava devagar durante o trabalho. Mas a rotina era sempre a mesma, nada mudava. À noite, ia para casa arrastando os pés inchados pelas ruas, subia ladeiras, galgava as escadas que iam dar na sua casa no alto do morro. Quase sempre deparava com o pai escornado na soleira da porta, exalando álcool por todos os poros, retratando a miséria e a decadência que a sua vida na favela refletia. A mãe, como sempre, estava no fundo do quintal, mexendo os tachos de doces para o dia seguinte.

Fim do dia... Os tabuleiros da barraca começam a ser retirados e ela também se prepara para recolher o seu. Guarda o que sobrou na cesta de vime e recolhe tudo que era seu na velha bolsa imitação de couro, presente que uma velha tia lhe deu. Vai saindo devagar pela rua, absorta nos pensamentos de sempre, sempre pedindo a Deus uma chance para mudar de vida, algo que não exigisse dela tanto esforço para manter o sustendo dos pais, velhos e cansados da peleja da vida que sempre fora a mesma: ganhar o dia para ter o que comer à noite. Virou a esquina e de longe viu as ruas sinuosas que levavam ao morro, com as escadas perversas que desafiavam o cansaço de suas pernas em cada degrau. Voltou o olhar para o outro lado da cidade. Lá, os carros já começavam a iluminar a noite que chegava com seus faróis, e os arranha-céus iam acendendo uma a uma suas janelas, criando a visão fantástica da cidade maravilhosa, onde sonhava ir morar um dia... Mas com certeza, não seria hoje. Atravessou a rua cheia de águas lamacentas, resto empoçado das últimas chuvas e começou a criar forças para começar a subir.

Não viu como tudo aconteceu. Sentiu apenas uma dor aguda que fez com que levasse as mãos ao peito, enquanto seu corpo tombava pesado no chão. Ainda chegou a ver alguém correndo em sua direção, mas de repente não ouviu, nem sentiu mais nada...

Do alto do morro, as pessoas olhavam a ambulância que levava mais uma vítima das balas perdidas, uma fatalidade rotineira naqueles lados. As luzes iam piscando pela rua afora, misturando-se ao brilho da cidade grande, que pela primeira vez recebia a visita daquela menina, de uma forma bem diferente de como ela sonhava... Foi pela primeira vez, apenas para dar adeus à vida.

maria do rosario bessas
Enviado por maria do rosario bessas em 24/01/2012
Código do texto: T3458673