Disseste-me Um Dia…

Crónicas de um tempo que espero que nunca venha…

Viste-me desorientado, em conflito, a lutar contra diversas memórias de um passado algo ainda demasiado presente e contra um presente que parecia ter vindo de há uns séculos atrás, viste essa luta que se arrastava há demasiado tempo, percebeste no meu olhar uma vontade de ir, de fazer coisas que ambos não queríamos, mas que eu tinha mesmo que fazer, sendo que o único obstáculo para tal eram as recordações desse passado e Tu…

Mas ao passo que as recordações podem ser ultrapassadas por acontecimentos do presente, não te poderia nem nunca iria jamais ultrapassar, e por isso ficava em silêncio durante demasiadas horas na soleira da porta da nossa vivenda, ouvindo os sons distantes que me esperavam, mas aos quais tu me impedias de chegar, não que mo pedisses, mas porque eu sabia que ia contra toda a tua vontade silenciosa, contra todos os teus princípios morais e civilizacionais…

E por isso enquanto o resto do que fora um belo sonho se desmoronava à nossa volta e se transformava num enorme horror, eu limitava-me a ouvir esses sons e a esperar secretamente para que nos batessem à porta, altura em que nossa sobrevivência faria com que tivesse mesmo que intervir…

Mas no entanto desde que tudo começara que me limitava a esperar e a desesperar…

Quando os meios de comunicação ainda funcionavam, as primeiras histórias que chegaram até nós pareciam meras revoltas locais, mas depois a coisa começou a crescer a um ponto tal que de meras regiões e regionalismos envolvidos passaram a estarem nações e os nacionalismos que todos pensávamos extintos…

Quando o exército da União mandado para debelar essas revoltas se dividiu e se transformou em exércitos de uma Europa que pensávamos anacrónica, começámos a perceber que o que tinham previsto alguns sábios anos antes estava mesmo a acontecer…

Os poucos políticos com algum tacto que ainda restavam ainda defenderam que o retorno às velhas fronteiras seria a solução para evitar a hecatombe, mas as coisas andaram depressa demais, o exército sendo europeu estava espalhado por toda a União, povos diferentes coabitavam com outros diferentes, lado a lado com a mesma farda à qual tinham prestado um juramento que deixou de fazer sentido…E como o exército era global estava em todos os países da União, e por isso a crise se instalou em todas as nações, e por isso era inútil restabelecer as tais fronteiras pois o inimigo estava dentro das fronteiras…

E os conflitos de séculos nunca tinham sido afinal esquecidos, o que se passara é que uma rara prosperidade económica e social fez que com as pessoas fingissem não existirem essas memórias recalcadas…Mas quando a prosperidade começou a findar, quando a União se dividiu entre mais ricos e mais pobres em vez de dividir de forma solidária e igualitária os sacrifícios, histórias do tempo da última guerra começaram a serem murmuradas, e os ressentimentos dessas histórias vieram relembrar que afinal na União não eram todos iguais, que afinal velhas contas tinham deixado por serem ajustadas…

E quando quem sentia isto passaram a serem os membros do exército da União, quando se dividiam nos quartéis por nacionalidades, quando mais uma crise económica colocou um fim definitivo ao que restava da prosperidade, o destino do continente passou a estar traçado…

E assim um acto isolado, um incidente entre soldados de diferentes países mas da mesma unidade redundou num pequeno banho de sangue no seu quartel, a aldeia global fez o resto e mais depressa do que leva a contar as imagens chegaram a todo o lado graças à auto-estrada da informação que nos tinha levado tão longe mas que naquele instante nos levou ao inferno…

Em quase todo o continente, onde houvessem unidades militares mistas as revoltas estalaram e de repente todo um continente estava em chamas…

A situação piorou ainda mais quando as tropas de cada nacionalidade tentaram voltar ao seu país e foram barradas por tropas do país onde estavam e que por isso eram em maioria...

Depois o caos passou às ruas das cidades, os paióis foram assaltados a guerra passou a ser total e não somente de militares, pois em cada nação se deu uma caçada ao estrangeiro…devido a politicas globais de emigração sem limites, por cada nação havia imensos “estrangeiros”, muitos deles em cargos invejados pelos naturais dessas terras e que se tinham visto ultrapassados pelas maiores qualificações dos tais “estrangeiros”…Ou então, como no caso das nações mais ricas, os “estrangeiros” mais pobres e que desempenhavam tarefas que os naturais não queriam por serem demasiado humilhantes para serem feitas por eles, de repente lembraram-se que esses povos estavam a ocupar postos de trabalho de desempregados, que acomodados nos respectivos subsídios de desocupação nunca se tinham importado realmente com o assunto…

E assim todos mergulhámos numa guerra bem comum, tal como tinha sido a União que nos levara até ela…

Qualquer vestígio de civilização desapareceu muito depressa, a economia colapsou, a energia também e mergulhámos nas trevas, civilizacionais e energéticas, literalmente…

Quando todos se aperceberam que as nações tinham colapsado, o instinto de sobrevivência fez com que surgissem bandos armados com diversas nacionalidades misturadas, cujo interesse maior, mais do que se matarem entre si passou a ser a sobrevivência comum…e assim começaram as pilhagens das povoações…

Habituados a séculos de civilização, um esboço de ordem começou a surgir localmente na figura de milícias que deveriam proteger cada povoação dos que as vinham pilhar, e assim todos os homens válidos passaram a fazerem parte dessas milícias que se envolvera em conflitos intermináveis pois os bandos de saqueadores eram imensos e estavam por todo o lado…Só os homens considerados fundamentais noutras tarefas eram dispensados das milícias, como era o meu caso, pois era professor e deveria transmitir o que restava do conhecimento aos jovens da minha região…

Mas quando o armamento pesado dos bandos destruiu a minha escola e a biblioteca e assim o que restava do conhecimento, eu deixei de ter utilidade e eu quis ir vingar a destruição do conhecimento…não me obrigaram a tal, deixaram-me escolher entre ficar em casa ou em ir com as milícias, pois para eles a figura de um professor com uma arma na mão era de tal ordem exótica que ao me darem a escolha pensaram que eu nunca iria com eles…

Enganaram-se…

Quem me impedia de partir eras Tu…

O bando armado em questão era chefiado por um antigo colega de faculdade que eu conhecera quando fora até à nação dele acabar o curso, priváramos o suficiente para o achar um amigo, e fiquei particularmente contente quando ele teve um cargo na minha nação, e fiquei contente dando graças à União por esta mistura de culturas…

Mas o homem amável e sensível que eu conhecera transfigurou-se com o conflito…Transformou-se num ser amargo que ao perceber que a sua nação, tal como todas as outras morrera, desistiu de voltar e dedicou-se às pilhagens, destacando-se pela invulgar violência que usava…

E por isso me debatia entre as recordações e a realidade…

Até que achaste que a luta, o conflito interior, que me consumia estava a ir longe demais, decidindo colocar um ponto final em tal quando

Disseste-me Um Dia…para ir…

E foi assim que abandonei o conhecimento que amava e que só existia na minha mente para me dedicar ao presente, onde a caçada aos nossos antigos amigos, conhecidos, ou simplesmente membros de uma União morta passou a ser o dia a dia de todos os dias…

Nestas alturas já ninguém se lembra do que nos levou até ali, ou prefere não recordar…

Mas quando ainda me dou ao luxo de lembrar, recordo que quando a União, a Solidariedade que nos caracterizava deu lugar a autistas e frios valores económicos que ignoraram a humanidade dessa União tudo começou a acontecer…Depois bastou uma crise económica para precipitar no abismo uma população que esquecera esse humanismo, essa solidariedade, e por isso nada a separava do tal abismo…

Na altura chamaram a quem alertou para o perigo do fim da solidariedade “idealistas patéticos”, desprezando-os e fazendo a população desprezá-los…

Mas hoje vemos o que resultou de zombarem e de desprezarem esses “idealistas patéticos…

As ruínas e o caos que substituiu a União mostra até que ponto esses homens eram idealistas e eram patéticos…

Pois…

Eu preferia mil vezes ter sido governado por um “idealista patético” do que pelos burocratas cegos que nos conduziram a isto…

Pois um idealista patético pode fazer grandes asneiras, mas nelas não consta massacrar o seu povo ou conduzi-lo a tal como se nada se passasse…

Vivam pois todos os “idealistas patéticos” e a União que com eles morreu também…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 30/11/2011
Código do texto: T3364052
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