A OUTRA METADE

Lá está ele: curvado sobre o balcão, olhar perdido no copo vazio. Devo matá-lo. Feito o serviço, volto para receber a outra metade. Matá-lo, o pobre coitado. Sinto pena. Sempre fui durão; mas a gente envelhece, o coração amolece. Mesmo assim, devo fazer o serviço. Quem sabe se eu o provocar... Quem sabe ele reage: me insulta, me agride. Aí faço o que tenho de fazer e volto para receber o que falta, a outra metade. Aproximo-me, então. No rádio do bar toca uma canção, a minha predileta. O coitado, agora, fecha os olhos e canta junto. Canta afinado, o mesmo timbre. Chamo o garçom: “Uma dose dupla”. A música continua. “Essa letra é linda”, diz o condenado. Grito: “Uma, não; duas, por favor”. O garçom volta e enche os nossos copos. Brindamos, não mais vítima e algoz. “Foda-se a outra metade”, decido. “Do que você está falando?”, o infeliz me agarra, exaltado. Pena é algo leve, vai-se logo. “Quem te mandou aqui?”, continua o outro, apertando-me o braço. Não me aguento. Aperto o gatilho. Ainda bem. Quase perco a outra metade.

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