Menos do que simples humanos…

"Crónica de tempos futuros..."

Somos por fim e no fim o que resta do original, e por isso assumimos o papel do original, cumprindo o papel para o qual fomos desenhados, para o qual fomos criados, mas indo para além dele, substituindo o criador pela falência deste e pelo seu fracasso, ambas as leituras são possíveis e admissíveis porque ambas as leituras são reais, ambas dolorosas, ambas dramáticas, a primeira por contingências naturais a qualquer espécie, a segunda por culpa própria dessa mesma espécie…

Somos fruto de uma ideia louca destinada a preservar a espécie, um conceito teórico que devido à urgência dos acontecimentos teve que se tornar em algo de uma forma premente prático, numa primeira fase de expansão, numa segunda em fase de retracção, em fase de extinção…

E tudo começou quando se deu inicio à exploração dos planetas exteriores com real possibilidade de albergarem humanos e não apenas os seus autómatos.

Mais ou menos no começo da exploração do cosmos cientistas algo visionários pensaram que se podiam transformar algumas atmosferas e as adequar assim aos humanos, não apenas a pequenos grupos exploratórios, mas a vastos milhões de humanos, possibilitando desta forma a real criação de colónias e não somente o estabelecimento de postos fronteiriços, ou meramente exploratórios.

A esse processo deram o nome de terra-transformação.

Durante muito tempo pensou-se nessa técnica vanguardista para transformar o nosso planeta mais próximo que teria condições para albergar os tais milhões, ou mesmo biliões de humanos, o planeta Marte, que em tempos recuados tivera mares, rios e sobretudo uma atmosfera complexa, logo que poderia suportar vida.

Mas na altura em que a humanidade nasceu Marte era um deserto quase estéril há muitos milhões de anos, sem água, apenas com algum gelo e somente com um resquício de atmosfera.

No entanto, mesmo apesar desse resquício, quando lá chegámos constatámos que a transformação completa da atmosfera para a adequar a nós era impossível, era inviável…

Numa imagem simples do que se passava, era como querer transformar/converter água envenenada em água pura. Tal era impossível, no máximo podia-se tornar essa água menos impura, mas ainda imprópria para consumo humano…

A solução passava então por criar do nada algo de completamente novo através da engenharia genética, a solução passava por criar humanos que conseguissem suportar essa atmosfera e ao mesmo tempo suportarem a da Terra.

A hipótese de meros clones era inviável, porque os clones mais não eram do que uma copia melhorada do original humano…

Era preciso ir muito mais longe…

Era preciso começar algo de novo, algo do nada, era preciso criar humanos com uma invulgar resistência em todos os aspectos, mas humanos de uma forma inequívoca e inquestionável, com o aspecto exterior humano e o mais possível com a sua fisionomia interior também humana, mas com as tais melhorias que iriam possibilitar a sua sobrevivência em atmosferas que liquidariam em poucos minutos os outros humanos...

No meio deste desafio tecnológico sem igual na história, entraram também considerações éticas, morais, religiosas, antropológicas, espirituais…

O novo ser deveria ser totalmente humano, até na sua identidade, até na ideia que tinha de si próprio, não podendo considerar-se inferior pela sua origem ser um laboratório e não de um ventre, nem superior pelas extraordinárias capacidades físicas e intelectuais que o tornavam uma versão quase nova do seu criador…

E como ser humano na sua génese, na sua essência, ele não seria um escravo genético e muito menos um trabalhador forçado, seria apenas humano com capacidades extraordinárias que fora criado para possibilitar a sobrevivência dos seus irmãos naturais mais vulneráveis perante o ambiente hostil que o esperava fora da Terra ou fora dos recintos climatizados.

Ao fim de alguns anos e muitos fracassos surgiu por fim o ser desejado, com resultados que superaram até a melhor das expectativas, pois além de corresponderem ao que fora solicitado, os novos humanos tinham também o dobro da esperança média de vida de um humano original.

E quando começaram a reproduzir-se entre si, a saírem de ventres humanos, o estigma de serem um produto laboratorial desvaneceu-se por completo…

E foi assim que povoámos primeiro Marte depois os planetas seguintes…

Claro que havia algumas diferenças exteriores, o novo ser era bem mais alto e corpulento que os humanos originais, numa multidão destacavam-se claramente, mas como de poucas dezenas em apenas uma geração começaram a serem muitos milhões, passou a ser comum a multidão ser composta tanto por humanos naturais como com os outros…isto na Terra, porque nos outros planetas eles eram a maioria pelas razões acima referidas…

Foi então que surgiu um movimento de puristas, de humanos que reclamavam que o espírito inicial da espécie estava a ser desvirtuado, de tal ordem que a esses humanos novos foi vedada a permanência e frequência da Terra mas não do resto das colónias…gerando-se pois um antagonismo entre estes dois tipos de humanos, uma separação indesejada que começou a acabar quando a própria Terra viu as suas condições piorarem de tal ordem que fora das cúpulas protegidas só poderiam sobreviver os novos humanos que em número ultrapassavam já os humanos naturais em declínio…

E no seu fim, e apesar de saberem que nos éramos a resposta para a não extinção da espécie, os antigos reclamaram para eles o papel de criadores, de originais, fazendo-nos sentirmo-nos menores, apesar de tal ser irrelevante porque o que estava em causa era a sobrevivência da espécie humana no seu todo e não meramente numa parte…

E num espaço muito curto os originais acabaram por desaparecer, sendo que até ao fim não abandonaram a ideia de serem únicos e de que com eles se extinguir a espécie, pois equivaleram-nos a pouco mais do que a chimpanzés inteligentes, e assim sendo a espécie morreria quando o ultimo falecesse…

E foi assim que apesar de termos garantido a sobrevivência da humanidade, e apesar de terem já passado alguns séculos desde que o ultimo humano original morreu, ainda nos sentimos menores e inferiorizados, apesar de já não haver motivo de comparação que nos faça sentir menores, apesar de sermos únicos ainda hoje e para sempre nos sentiremos de facto estigmatizados, nos sentiremos

Menos do que simples humanos…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 02/11/2011
Reeditado em 03/11/2011
Código do texto: T3313137
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