Limpo.
Era tarde. E as horas dentro dela pareciam uma vida inteira, duas, muitas. As que ele não tinha vivido. As que tinha ainda pra viver. As que ele não viveria mais, porque já não havia com quem. Silêncio. Meio-silêncio. O som de caixa sendo mexida o estava incomodando. E nem podia fazer muita coisa. Chovia. Uma chuva branca e intermitente do lado de fora, às janelas de vidro fosco. Chovia. Umas gotas quentes de sal do lado de dentro. Dor. E ele se lembrou. Claro, não que esquecesse. Mas se lembrou. Ele adorava chuva. Todas. Dor. Os olhos já estavam vermelhos querendo saltar. Tal as letras infinitas que tinha pra contar a ele. Mas não podia mais. Ele abriu a gaveta da escrivaninha e retirou três comprimidos do frasco escuro, sem bula. Um pouco de anestesia. Precisava. Mas assim que os colocou na boca, sentiu um enjôo, como se estivesse cometendo um pecado. Cuspiu tudo. Tomou água para limpar o gosto. E o choro veio com força. Decidiu aguentar sozinho. Não o veria ainda. Não merecia aquele paraíso. Dor. Chuva. Silêncio.