BIOGRAFIA DE UM DESVALIDO
Brotou da junção instintiva de dois bichos. Cultivaram-no, por meses, a fubá e pão seco, até que, da fêmea parideira, foi expelido como se excremento de égua no pasto, lambuzado com restos de placenta. Foi acalentado em colo e tetas explorados, esvaídos, murchos...
Cresceu claudicando, rastejando e aprendendo a convivência passiva com as privações. Quando, por algum desvio de lucidez, rebelou-se, lacraram sua boca, encerraram seus movimentos, fizeram-no lamber os pés da condição inferior que carregaria nas costas durante todo o percurso. Enfim aceitou: tinha nada porque valia nada!
Prosseguiu alternando maus momentos pelos dias. Conduziu seus senhores como jumento a chibatadas intermináveis na cara, no estômago!
Casou-se, copulou, gozou com ânsia para se abastecer. Procriou, encheu o mundo de novos répteis e ampliou bens alheios com o sacrifício das crias. E como recompensa, a cachaça, o futebol.
Conheceu a deterioração do corpo zurzido pelo peso impiedoso dos tempos, urrou com as dores da pobreza fincadas nos órgãos podres. E chegou, agonizante, sem forças, à reta final.
BHte., 1997.