Madrugada.
Estava prestes a dar duas da madrugada, Lurdes mantinha os olhos abertos. Na cadeira de balanço, se consumia, não poderia dormir, fazia dos balbúcios o único fio no silêncio: "Ó, sangue e água..." Estava no décimo terço. Sabendo do tipo de programas que passava à noite nesses dias difíceis, sequer passou pela cabeça a ideia de ligar a rádio. Apesar disso, estar vigilante naquelas horas propiciava uma sensação tão tensa quanto ao de ouvir, horas ininterruptas, programas policiais: sons de sirene, gritos, latidos, disparos. Ao longe, a ilha banhada de sangue se manifestava. Escapou o olhar para o quadro ao lado do abajur, que deixara junto ao seu santuário. Logo abaixo das mãos da Virgem o retrato parecia protegido, dela e de seu filho, que fizera dezoito anos há uns dias. No rosto dele havia a jovialidade que outrora pertencera à Lurdes, tudo nele era uma lembrança. Levantou-se e foi até lá, ver sua imagem mais de perto, seu menino. Acendeu outra vela e foi à porta, para ir à calçada novamente. Mirando a esquina, alimentou outra esperança de ver surgir de lá aquele rosto.