Último Suspiro
No leito de enfermidade pediu um favor especial: liguem e chamem meus amigos. Precisava falar com eles. Surpresos pela inusitada solicitação, os parentes entreolhavam-se. Tal surgia pelo facto de o enfermo, em seus dias de saúde basta, não ter sido bom a estabelecer relações interpessoais como tal. Conheciam-se poucas pessoas a quem ele pudesse chamar de amigos. O sobrinho que decidira servir de mediador, interveio e perscrutou o enfermo, com interrogações provocativas:
- Tio, quem são os teus amigos? Onde vivem eles? Ajude-nos a saber identificá-los.
No esforço de comunicar sua intenção, o enfermo esgrimiu sua mais pesada confissão:
- Meus amigos são anónimos seres especiais. Simples, que conheceram-me na plenitude vazia do meu ser. Sentavam comigo sem atentar segunda intenções. Não importavam-se com títulos, posições sociais, tão pouco esforçavam-se para falsear sorrisos para sacar tostões dos meus bolsos. Eu morro dentro de pouco tempo, sei disso. Porém, parto na tristeza de saber que mesmo entre os meus consanguíneos não pôde ser mais que um fulano paga conta, um ATM andante, a quem os olhos eram direcionados para resolverem-se! Uma porta para outros fins! Mas a posse não serviu de ponto de unidade, e sanidade relacional. Afastaram-se de mim enquanto ser relacional. E eu afastei-me de vós também pelas razões idênticas! Morro agora com o peso de ter feito pouco para mudar este cenário enquanto família. É um dos meus pesos de consciência! Mas, saibam que na simplicidade de totais estranhos encontrei o consolo que muitas vezes precisei da família, mas não recebi, não encontrei. Assim, os meus amigos não vivem em mansões, não comem em restaurantes especializados, tão pouco ostentam posses alargadas. Hão de encontrá-los nos mais isolados cantos. Peço-vos que busquem as pessoas cujas descrições deixei estampadas na primeira página da minha agenda pessoal. Elas são minhas amigas de facto. Elas conheceram-me melhor que vocês todos juntos aqui. E por último, no meu enterro não se leiam elogios alguns. Que não o façam! Não haja tamanha hipocrisia de adular-me a partida. Porém, permitam que os meus amigos falem a meu respeito, começando com a prostituta. E na sequência deixem o mendigo da praça da república dizer algumas palavras, bem como o barbeiro da esquina 26. E não esqueçam, por favor, o varredor da nossa rua! E por último, que o advogado distribua minhas posses de acordo a orientação na segunda página do meu testamento!
- Mas tio, quem são essas pessoas que você mencionou?! Tio! Tio! Tio!
Fez-se silêncio! E deu-se o último suspiro!