Dicotomia

Os dois conversavam trocando olhares enquanto andavam de mãos dadas. O sol chegava ao seu ponto mais alto como se os abençoasse com seus raios; o céu dos apaixonados é uma planície anil infinita e a grama que pisavam descalços, apesar de um tom verde vivo, vida que quase não valia nada, seus pés as esmagavam. Chegaram a um gramado baixo do parque e deitaram no chão.

- O sol está muito forte, não consigo nem olhar para o céu! - Murilo disse cobrindo o rosto com as mãos.

- Então olha só pra mim!

Ele virou-se de lado então e ainda piscando para umedecer as vistas percebeu algo estranho na expressão facial de Carlos. Uma sensação muito oposta à que sentiam há segundos atrás o arrepiou por dentro. Murilo deslizou a mão até tocar no braço dele e o olhou atentamente aguardando que dissesse alguma coisa, mas ele não dizia nada, ficava apenas um silêncio perturbador entre os dois.

- Aconteceu alguma coisa? - Murilo indagou.

- Nada demais.

- Mesmo assim, me conta.

- Nada, é que fazia tempo que a gente não se via e te ver me faz um bem tremendo! Você nem imagina o quanto.

Mesmo assim estava estranho, Carlos estava agitado, seus olhos trafegavam pelo rosto do seu namorado, mas nunca os encarava, algo que não era comum a ele.

- Será que é só isso mesmo?

No mesmo dia, Murilo estava na sala de estar do seu apartamento, como costumava fazer, sentado à luz da tarde; Todas as luzes estavam apagadas. Um sopro de tranquilidade necessário para ler seu livro tranquilamente. Porém, inquietamente algo lhe roubava a atenção, a lembrança da sensação de que Carlos escondia algo dele na conversa daquela manhã.

Deixou o livro de lado e caminhou lentamente até a grande janela do quarto que dava na rua. Lá embaixo os carros passavam incessantemente e as pessoas ocupavam as calçadas. Os dias quentes normalmente deixam até os finais de semana mais agitados, como se fossem dias de mais tarefas do que na semana. Dias de pôr em dia pendências da vida real, longe das distrações do trabalho; De se questionar se há ainda vida social, amorosa ou sexual.

Seus pensamentos vagavam e criavam milhares de hipóteses para o que poderia ter acontecido entre os dois. Lembrou-se da rotina e que eles raramente podiam se ver, trabalho, família e uma vida escondida. Por quanto tempo viveriam daquele jeito? Onde os ambientes não se cruzam, do contrário, criam uma dicotomia entre um e outro.

- Eu sou seu de corpo e alma. - Murilo disse.

- Eu também.

- Às vezes não parece. - sentou-se na cama e abaixou a cabeça. - Parece que só o corpo é, mas a alma está em outro lugar, sua mente sempre está distante de nós.

- Isso é uma impressão sua.

- Será?

Em seguida, ele determinou a si mesmo - parar de pensar sobre essas coisas e deixar de lado os questionamentos que não estavam levando-o a lugar algum. Colocou o café para esquentar e cruzou os braços apoiado-se no armário da cozinha enquanto esperava.

- Sabe, quando eu te conheci você foi diferente de todas as outras pessoas. Você entende quando eu estou triste e me levanta, me abraça quando eu estou carente mesmo sem eu ter dito qualquer coisa. Eu me sinto feliz por te ter na minha vida, Murilo. Mesmo às vezes não sabendo demonstrar exatamente, ou da forma que você espera.

A água do café ferveu demais e começou a cair para fora do bule e ensopar o fogão. Desligou o fogo apressadamente e gritou alguns palavrões. Depois de algum tempo, com tudo limpo. Retornou para a sala de estar, desta vez precisou acender a luz porque a tarde já se transformava em noite.

Se atirou no sofá e pegou o celular para checar as mensagens. Haviam cinco mensagens de Carlos. - Nada demais, só agradecendo por terem encontrado-se de manhã no parque e que não poderia sair na mesma noite, mas que passaria o domingo todo com ele. A sensação incômoda continuou para Murilo. Era como se todas as suas faculdades mentais não o tornaram capaz de digerir algo como aquilo. - O que há de errado comigo? Um olhar estranho, um jeito diferente, - por que Carlos ainda não criara coragem de tornar público sua relação? Eram muitas coisas para ele.

Ficou ali sentado por um tempo sem fazer nenhum movimento antes de responder com um emoji de coração. Em seguida tomou uma decisão que talvez fosse um fracasso segundo seus próprios julgamentos, mas que era como uma alavanca para sua autoestima. - Desta vez, não houve nenhum "será?".

Tomou um banho, se arrumou, depois pegou a chave do carro. Dirigiu por alguns minutos até chegar em Perdizes. Subiu em um apartamento e trocou mensagens pelo celular ao invés de bater na porta.

- Olá. - disse um cara com aparência de uns 10 anos mais velho, sem camiseta que abriu a porta. Sorria de um jeito provocador e o examinou do ombro aos pés. - Qual é o seu nome "atv zona oeste"?

- Murilo... prazer.

- Entre, fique a vontade.

Alberto Novais
Enviado por Alberto Novais em 05/07/2019
Reeditado em 31/08/2019
Código do texto: T6689090
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