Boa sorte, mulher

As tardes eram sempre entediantes, - ai dela se não tivesse a TV! As horas não passariam, o dia jamais viriaria noite e estaria no paraíso. Mas como de costume, estava sentada no sofá de frente para a TV. Levou a xícara à boca, mas antes de beber, passou um curto tempo tentando esfriar o café. Sua cabeça estava livre de pensamentos por algum instante. Aparentemente a novela da tarde tinha tomado toda a sua atenção naquele momento.

Não percebia o ar gelado que entrava pela janela que sacodia as cortinas na sala de estar, também ignorava o barulho dos carros que passavam na rua a uma parede da sua casa e também os gritos das crianças empinando pipa a tarde toda. Ignorava principalmente as dores nas costelas e as manchas roxas que tinha no braço. - Afinal, pensar nisso tudo doía seu coração.

As cortinas estavam rasgadas e o tecido imundo, mas precisava de alguém para tira-las lá de cima para lavar. Os carros podiam se tornar facilmente uma armadilha para uma criança que ao invés de estar na escola dizia - Eu não quero, já tenho doze anos e posso decidir. As dores então, nem se fala! Estas lembravam seu casamento.

Então ali dentro do vidro da TV acontecia um conto que para ela não importava se fazia ou não parte da realidade. Havia ali tanta emoção que de alguma forma envolvia os seus pensamentos. Era como se a Gabriela Duarte fosse feita para o Fábio Assunção. Quem eram? - são só atores e nada do que acontece na novela é realidade.

E então a TV desligou sozinha e todos os eletrodomésticos da casa também pararam de funcionar. Ela entendeu automaticamente o que aconteceu, respirou fundo e tentou não se sentir triste por isso, mas era muito difícil.

- Você não vai pagar as contas?

- Eu não tenho dinheiro.

- Você recebeu há três dias.

- Não te interessa, mulher. Eu to saindo.

- Onde você vai?

- Também não te interessa.

E a porta batia. Já estava sem tranca de tanto bater.

- Mãe, tem algum pão pra comer?

- Não, eu vou ver o que faço para você. Pode ser ovo frito com arroz?

- De novo?

Se não eram as fábulas, quem eram seus anjos da guarda? Se não sua fé, quem aqueceria o seu coração?

Era difícil para ela etender que havia uma explicação para muitas das coisas quais ela acreditava e passava o dia sonhando; Tão difícil quanto qualquer cálculo matemático para alguém que nunca pôde ir a escola. Mesmo assim, era mais impossível ainda ver-se como alguém capaz de mudar os rumos da sua vida. Quase sempre se perguntava - sou realmente capaz de fazer algo sozinha para mudar essa situação? Tantas pessoas já haviam a dito isso. - Só você pode decidir sua vida.

- Quem sou eu? - Se não alguém que esperava por uma luz divina que nunca chegava? Enquanto isso, todo o seu desgaste era tentando remendar situações difíceis enquanto se esforçava também para não sofrer por tudo que a diziam que deveria fazer e que ela não conseguia. Se alguém tivesse a explicado a vida real antes... Se não tivesse sido lançada à sorte pagaria a vida toda o preço das suas escolhas? Mas estava ali, sozinha à noite.

E à noite era exatamente o momento que ele chegava e como sempre estava bêbado.

- Eu quero comer. - ele disse.

- Não tem nada, eu dei o último ovo que tinha na geladeira para Gabriel.

- Filha da puta.

E então ela sofria as consequências de todas as coisas que ele acumulava em si, oprimindo, transformando em agressividade. Sobre a vida dele, ele não sabia nem mesmo por onde começar. Ouviu a vida toda que o homem tem que amar sua mulher e sustentar seus filhos, mas nem a amava e nem conseguia fazê-lo. E então na rua distraía-se e bebia porque dessa forma evitava pensar sobre tudo isso, evitava remoer lembranças do passado, da infância. Ainda lá em qualquer bar que fosse, ouvia de gente que olhava tudo à margem que é ele quem manda, é ele quem deve fazer e que se não fizesse, não era homem. E o que é ser homem? Alguma vez ele tinha se questionado?

Ela pensava em tudo isso, explicava assim na sua mente turbulenta. Tornava-se cada dia mais racional e suas emoções eram um alerta de perigo. - Há quanto tempo não sabia o que era o amor! Quantas coisas vieram à sua cabeça quando a TV desligou! Quantas coisas guardava dentro do coração!

Todo esse devaneio então a atingiu como um raio. E ela sentiu uma reação corporal muito estranha. Dores fortes na cabeça e uma agitação que não conseguia conter. Caiu no chão. Tarde demais, uma parte do seu corpo já não se movia mais e sua língua enrolava tanto que ela não podia nem pedir ajuda. Estava então lançada à sorte de novo.

Alberto Novais
Enviado por Alberto Novais em 29/06/2019
Reeditado em 29/06/2019
Código do texto: T6684534
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