Dormentes
Com atenção ao passo, atravesso a fronteira entre o trem e a plataforma. De pé, próximo a uma das janelas, sinto uma brisa suave em meu rosto anunciando o despertar da inércia pelas engrenagens da locomotiva.
Olho ao redor e algo que até então não havia chamado minha atenção se coloca em perspectiva. As pessoas não conversam, não interagem, nem mesmo desviam o olhar. Parecem ter se tornado mais introspectivas e exageradamente interessadas em consumir informação. Como que hipnotizadas, percorrem diligentemente as letras miúdas carregadas de utilidade questionável, que ocupam ao mesmo tempo mãos e mente.
Do lado de fora, as edificações vão dando lugar ao verde das tipuanas. O amarelo de suas flores se mistura com o azul dos sanhaçus enquanto rareiam as nuvens brancas, antes tão cheias. À medida que a paisagem vai se transformando, a cena dentro do trem também começa a tomar nova feição.
O jovem, cansado, agora repousa o chapéu sobre as pernas e recosta a cabeça na janela a refletir sobre algum assunto que acabara de ler, enquanto contempla o cenário em movimento através do vidro. Outro homem se levanta para buscar um café. Mero pretexto. No trajeto aproveita para cortejar uma bela moça que viajava ao lado do pai, distraído. Um pouco mais a frente, uma senhora já aborrecida aplica um golpe certeiro na mosca que não a deixava dormir. Ao fundo, um senhor mal humorado põe-se a resmungar feito uma cigarra nos ouvidos do rapaz ao seu lado, reclamando do calor, da quantidade de gente no trem, dos filhos indolentes e da ideia estúpida do prefeito de construir um chafariz com a imagem de Santo Agostinho em frente a sua casa.
As letras, que antes sorviam atenção e energia das pessoas, pouco a pouco vão deixando o cenário. Uma jovem que viajava de pé ao meu lado caminha até a porta. Vai descer na próxima estação, assim como eu. Pego meu chapéu e minha bengala. Meu relógio de bolso marca exatamente nove horas. Na saída, ofereço um cumprimento aliviado ao maquinista, que durante todo o tempo manteve nossas vidas em movimento. O único que, desde o princípio, não havia se posto a ler jornal dentro do trem.