Ao meu guri
“Vai trabalhar, criatura! Vagabundo!”. Quando lembro do meu pai, essa imagem é a primeira que me vem à mente. Desde que me entendo por gente, falta dinheiro dentro de casa. Chego suado do batente, não durmo no ponto. Cara de fome, não tenho mais. A bebida é amarga, mas eu vou levando. Tento pensar no futuro. Vai chegar o momento, o meu momento. Mandar no meu destino! Não quero manchete, jornal. Talvez um retrato. Outra realidade menos dura.
Preparo meus documentos. Camisa engomada, gravata apertada. Dou um beijo na morena. A saudade no peito. Já no centro da cidade, um aceno aos amigos no bar. Bilhar? Hoje não posso, vai me estragar. Vou contra a corrente. Tenho fé. Ainda pago pra ver essa linda roseira florescer.
Engulo a labuta. O chefe, filho da outra, é quem manda. Não tem discussão. A sala já escura. Só o barulho da cidade lá fora. Isso é hora? Essa onda de assalto me deixa com um nó no peito. Mas não tem jeito. Debaixo do viaduto, toda aquela escuridão. O cheiro de gasolina queimada. Sinto medo dos moradores de rua, ou de acabar me juntando a eles. Sinto medo da fila da previdência.
Compro um presente pra morena e os três contos de troco deixo na loteria. Quem sabe? Daqui a dois meses desponta o meu guri. Aí vai ser só alegria! O coro vai cantar! Vou levar minha viola pra rua, esbanjar poesia! Se na calada da noite eu me dano, amanhã há de ser outro dia!
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Este conto foi destaque na categoria CONTO no "Concurso CEAT 50 Anos - textos e desenhos para a Revista Philos / Festa Literária de Santa Teresa – FLIST 2019", cuja temática era livre, porém inspirada na obra de Chico Buarque. O conto foi publicado na Revista Philos, com o nome real do autor e não pelo pseudônimo "Otto Turra", utilizado neste site.
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