Acenderam-se a luzes de alerta e uma voz feminina anunciou: Senhoras e senhores! Este é o voo ABS 815, com destino a Paris. Nimbos se aproximam. Por favor,  mantenham a poltrona em posição vertical e apertem os cintos.  Obrigada!
A voz era de   Vannini.
Ele fitou-a demoradamente e percebeu nela o rosto cheio, e o corpo mais gordinho. Sentiu Cezar Ubaldo sussurrar em seu ouvido: Carregamos no ventre a hóstia consagrada em partos menores... No ventre carregamos vida, então!...Carregamos no ventre o sol da manhã, a manhã irmã... Ele, Fernão, nunca desejara tanto  ver o sol da manhã, da tarde..., ou mesmo ainda que  apenas uma nesga de lua, um sinal qualquer de vida fora das paredes da aeronave... Queria contemplar o semblante de rostos amenos, diferentes daqueles  espavoridos de seus companheiros de voo.
Embora tentasse acalmar os passageiros, logo que o sorriso fabricado se desfazia, Vannini voltava a afundar-se em pensamentos pouco nobres. Pobre alma! Felizmente, com esforço sobrenatural, afastou sentimentos de rancor e ódio contra Fernão, afinal, eram eles passageiros da agonia. Ela sentiu tontura. Apoiou a mão na fuselagem da aeronave e impostou a voz: Senhoras e senhores, estamos sob forte turbulência, por favor, mantenham a calma. Preparem-se para um possível pouso de emergência. Utilizem os assentos flutuantes. Obrigada! Desligou os canais de comunicação e acenou para Fernão com gestos carregados de novos significados, como se lhe dissesse: Vamos morrer. Ele compreendeu que estavam em situação de emergência. Ouviu o  mar  bramindo debaixo de seus pés, e se sentiu na pele da Gaivota de Bach, em choque  contra o rochedo. Abriu o terno, conferiu o colete, retirou o paletó e afrouxou os sapatos.
Os passageiros estavam com a cabeça sobre os joelhos e os tripulantes, mostravam-se compenetrados, vasculhando procedimentos de segurança para uma situação de perigo. Levantou-se. Suas pernas tremiam e o coração queria saltar do peito. Assentou-se outra vez. Deixou que se passassem alguns segundos, minutos... Queria ser uma gaivota voando a 1200 quilômetros por hora. Repreendeu seu pensamento: Gaivotas não voam a mil e duzentos quilômetros. A essa velocidade, seu corpo seria arrastado como uma folha seca tocada  pelo vento.
— Folha seca?...
— Sim, Fernão. Se tiveres a ousadia de dar um salto para o infinito, poderás salvar tua alma. Coragem! Se não tens asas para voar; contenta-te em dar passos largos.
— O vento rasgará  meus olhos e arrancará  minha pele.
 Talvez pudesse laçar-se de paraquedas, mas  as cordas não  suportariam a tensão. Desejou ser uma gaivota. Ainda assim, com certeza, àquela altitude,  desceria a uma velocidade meteórica, e em pouco tempo, se esborrachar contra o chão ou o espelho das  águas. Sentia-se como que acorrentado no porão de um navio negreiro. Se fosse uma gaivota, superaria seus limites voando a uma velocidade nunca atingida por  sua espécie e se chocaria no paredão das águas, duras como pedra do mesmo  modo. Não tinha jeito.

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Adalberto Lima, trecho de "Estrela que o vento soprou."