Genocídio

O pai fechou o jornal e colocou os óculos de leitura na mesinha ao lado do sofá.

- O país está melhorando - comentou em voz alta. - Você percebe agora que temos um rumo e uma direção.

A filha, que entrara na sala enxugando as mãos no avental, fez um muxoxo.

- Pai, fiquei desempregada por causa desse governo.

O velho a encarou com irritação.

- Pois foi uma boa coisa! Mulheres não deveriam mesmo trabalhar fora... principalmente no serviço público. Você agora pode se dedicar a cuidar de mim, que é o dever de toda filha!

Ela encarou o pai e cruzou os braços.

- O senhor está me dizendo que não sou uma boa filha? Eu tinha uma empregada! Ela foi presa, lembra? Uma criatura maravilhosa, excelente cidadã, não teve culpa de nascer negra!

E, dedo em riste:

- Até hoje fico me perguntando quem a teria denunciado à polícia!

O velho resmungou alguma coisa, mas não respondeu.

- O senhor deve estar satisfeito agora, não é papai, já que estou à sua disposição o dia inteiro - provocou ela.

- Aqui é o seu lugar. E na ausência do seu marido, que ninguém sabe quando voltará, eu comando a casa - retrucou o velho.

A filha mordeu os lábios.

- Sabemos que ele não vai voltar, não é, papai?

O velho a olhou de soslaio.

- Do que está falando?

No meio da sala, braços cruzados, a filha o encarava numa pose desafiadora.

- Levaram os deficientes mentais, os negros, os judeus, os meio-judeus... como o meu marido. E nunca mais os veremos, não é, papai? Por que agora o país tem rumo e tem direção.

E voltando a passo duro para a cozinha:

- Mesmo que o rumo seja o de uma grande sepultura coletiva!

- [10-07-2017]