A seca de 32 não foi culpada sozinha
Pois desde 27 que ano bom já não vinha.
<Canto de lamentação dos anos 30>
 
 
O dia amanhecido vê  uma multidão que ocupa o pátio da fazenda Campo Grande. Homens, mulheres e meninos, todos traziam uma garrafa cheia de água e a barriga vazia. A seca de 57 repete a fone de 32 na paisagem seca e no céu rendado de nuvens brancas.  A comida estava escassa na região, mas a casa do coronel  Generoso era farta.
— A senhora já viu? O terreiro tá coalhado de gente!
— Abata cinco galinhas e dois frangos. Faça um tacho de arroz, disse Corina.
— E feijão?
— Pobre não gosta de feijão. Faça pirão, maxixe e quiabo. Cozinhe um caldeirão de nabo. Saco vazio  não segura em pé.
 Fazer comida para mais de trinta pessoas era serviço demais para uma só.
— Nhá Santa... Nhá Santa...
Peraí, tô rezando...
 As horas avançam. O ponteiro grande parece apressado. Nervoso. Euzébia também. Corina começa a cuidar do maxixe. Nhá Santa lava o quiabo picado, e  põe limão. A panela baba. A cozinha inala o cheiro de sementinha de coentro verde, alho e sal.
Nhá arruma a mesa grande — doze talhares — três vezes repetidas. Doze cadeiras acomodam os convivas. Depois mais doze se sentam à mesma e se revezam. Mais doze, enfim, é hora da procissão. Os meninos comem na cozinha, e o grandes  que são cria da casa, receberam a comida em prato esmaltado e se fartaram sentados no peitoril da varanda.
Peregrinos tomam a estrada. Rezam. Cantam. Suplicam. E voltam molhados. Pingos graúdos caíram sob suas cabeças. O céu sinalizou que ouviu as preces dos penitentes. Mas, naquele ano, choveu pouco no Norte de Minas, e a luta para salvar o gado era interminável. Levantava um animal aqui, caia outro ali. Levantava um ali, caia outro acolá... Até barrigueira para o animal ficar em pé, Generoso fazia.  Ele aprendera a salvar gado nas grandes secas do Nordeste, dando papelão molhado e garapa de rapadura às reses mais fracas. Muita gente fazia isso e salvava parte do rebanho.  Quem não tinha papelão, oferecia cacto sapecado, levemente queimado, para eliminar os espinhos.
— Papelão para vaca parida? O pasto está minguado, o leite também, mas você pode comprar torta de algodão e dar ao gado.
— Nada não, mulher. Quero que o leite saia embalado como ovo de galinha!
— E a garrafada de rapadura? É para o leite sair adocicado?
— Sê besta!...Rapadura é o melhor energético para levantar animal caído.
Não quis dizer que no Nordeste, ele comeu sementes de maniçoba,  encontrada no esterco das vacas, e alimentou-se da mesma  macambira que queimava para dar ao gado na  seca de 1932. Nem que era nômade como milhares de nordestinos, que abandonam suas terras, por causa da seca e vão tentar a sorte, longe do seco torrão. E quando um grandalhão, do alto de seu orgulho perguntava, em tom zombeteiro: ‘Tu és nordestino, bichinho?’ Tinha vontade de dizer: ‘ Sou polonês, alemão. Quem sabe, oriental!’ ‘ Sou um vira-lata que morou em Minas Gerais, Bahia... Maranhão, São Paulo, Goiás e Rio de Janeiro. Mas nasci no Nordeste.   Ficava, no entanto,  com outra resposta: ‘Sou brasileiro...’  
— Deste tamanho estás mais para boi curraleiro — diz o mineiro.
— Pé-duro. Na minha terra, pé-duro. Mas afinal, quanto vale um pedaço de carne a mais, se São Miguel não é açougueiro! De que vale o tamanho da carcaça, se o  espírito  imortal, não tem pele nem osso!  Tanto faz 100 ou 150 granas de pó.  Na balança de Deus, qualquer quantidade tem o mesmo peso. 

***
Adalberto Lima, trecho de Estrada sem fim...