PEQUENA ASA
No camarim de pobreza cênica, ele está sentado à frente do espelho já gasto. Meticulosamente pinta cada detalhe do rosto magro e vincado. Maquiar-se sempre exige uma disciplina ritualística e ele a segue. Nada muda. Um aparelho de tocar CD's, num volume baixinho como que para dizer que ele se desculpava com os demais membros da caravana por gostar de ouvir blues chorosos que falavam de amores desfeitos, executa Life Without You. Alguém avisa através da lona/porta que já está na hora. Solitariamente ele se benze. Dá um stop no aparelho.
Chega ao centro do picadeiro. Concentra-se, embora nem seja necessário, pois poderia repetir mecanicamente o número já gasto que montou a tempos. Passeia o olhar pela escassa plateia. Depois desse passeio, sempre, fixa o olhar penetrante numa mocinha qualquer que haja ali e, ao longo do número, diverte-se com todas as reações que só ele consegue notar na escolhida. Intimamente acha graça, pois o desconforto parece ser único para cada uma. Irá amá-la na tenda solitária mais tarde. Sempre acaba assim e o pessoal da caravana nunca se importou. Acabado o número, cumprimenta alguns da plateia e habilmente deposita um pequeno papel na mão da escolhida.
Depois de curvar-se pela última vez, abandona a lona principal. No caminho de volta conversa com outros artistas; entre si sorriem, gesticulam, conversam baixo, mas animadamente. Bebem. Despede-se e deseja bons números aos que entrarão na sequência. De volta ao camarim acanhado, inverte o ritual: livra-se de toda a maquiagem e roupas do personagem. Vai recolhendo os pertences para voltar à tenda/dormitório. Dá um eject no aparelho. Quando introduz a mão para apanhar o CD sente uma dor aguda e recolhe-a. Vê sangue gotejando de um dos dedos. Olha então para o pequeno espaço e lá, enrodilhado, está um filhote de serpente. Desespera-se. Sob a tampa um pedaço de papel onde lê: “a da parada anterior tinha namorado”. Recorda-se então de alguém abandonando a arquibancada antes do fim de seu número. Carregava um estojo de violão na mão esquerda.