O dia em que começámos a falar (Versão curta)

Algures num futuro próximo...

Nasci num mundo estranho, num mundo em que apenas as crianças falavam.

Nasci num mundo onde a comunicação entre humanos se fazia da mesma forma que se faz com o resto neste mundo tecnológico: por ondas que nos permitem ligar, desligar, programar os nossos electrodomésticos, as nossas máquinas, os nossos veículos.

Basta pensar uma acção e ela é de imediato executada, sem que percamos tempo a verbalizar tal e muito menos a manipular esses objectos.

Nos nossos livros de história, e nos restantes registos vi um dia que nem sempre as coisas foram assim, que durante a maior parte da existência da nossa espécie nós falávamos, nós tínhamos que tocar nos objectos, até que quando a tecnologia saída da revolução industrial avançou ainda mais tudo começou a mudar.

Primeiro os comandos das antigas televisões permitiram que as manipulássemos sem lhes tocar, sendo que com o rápido passar do tempo esta funcionalidade passou para tudo o resto, até que chegou um dia em que alguém pensou que ao falarmos entre nós consumíamos demasiado tempo e energia, pelo que foi feita uma primeira experiência na qual alguns de nós sofreram aquilo que chamaram de “melhoria” ao introduzirem no seu cérebro aparelhos do tamanho de células que permitiram que apenas ao pensarmos numa acção os objectos nos obedeciam e as outras pessoas nos ouviam. O sucesso desta experiência foi tal que se decidiu que todos os humanos deveriam ter essa melhoria.

Claro que crianças até uma determinada idade não deixariam de falar, não tinham a consciência que lhes permitisse tanto obedecer como compreender que não deveriam falar. Assim, desde o seu nascimento até à idade da compreensão eram mentalizadas que não deveriam falar, e na altura em que compreendessem tal, seriam “melhoradas” deixando assim de falar.

O meu mundo era pois um mundo de quase silêncio humano, onde se ouviam o som de todas as coisas menos de nós.

E afinal defendiam que não era mesmo necessário falar, que compensava não falar: para demonstrar assertividade pensávamos com mais intensidade e a outra pessoa sentiria tal quando ouvisse a nossa voz dentro da sua cabeça, para mostrar alegria bastava sentir um enorme bem estar e a outra pessoa ouviria a nossa voz emanada numa sensação de alegria, se estivéssemos apaixonados e quiséssemos demonstrar à pessoa amada tal, repetia-se novamente o processo adaptado a esta emoção, o mesmo se passando com o resto das emoções, estados de espírito.

Tudo estava pois bem, ninguém parecia incomodado em não falar, ninguém parecia estranhar aquele silêncio, afinal éramos a quarta geração humana a viver sem falar.

E assim quando te vi pela primeira vez o meu olhar mostrou-te que me agradavas e o meu cérebro que gostei de Ti desde o primeiro olhar, sendo que foi recíproco e nos começámos a dar, a namorar e por fim a vivermos juntos e a construirmos um futuro juntos.

Os anos foram passando e o nosso amor permaneceu intacto, não esmoreceu, éramos muito felizes mas desde o começo que eu sentia que me faltava qualquer coisa, mas sem entender o quê…

Até que um dia compreendi o que estava em falta: tinha tudo de Ti, assim como tinhas de mim, mas faltava ter a tua voz…

“Loucura, pura loucura tal pensamento, afinal ninguém fala…”

Repeti imensas vezes para mim, esperando que o desejo passasse, mas não passou, pelo contrário, a fome de te ouvir ia aumentando dia para dia, até que chegou a um ponto que te disse na voz trémula de quem começa a falar, uma expressão muito curta, mas uma expressão que acabou por mudar tudo…

“Amo-te”

E ao responderes

“Também te amo…”

O mundo mudou muito para além de nós os dois:

Com medo de represálias decidimos só falar em casa, mas sentíamo-nos prisioneiros por ser apenas ali, pois queríamos falar um com o outro em qualquer lado onde nos encontrássemos, pelo que um dia, na rua, e sem que o planeássemos parámos de forma espontânea no meio desta, olhamos um para o outro, trocámos um beijo e repetimos

- “Amo-te”

Em voz baixa, mas num mundo sem sons deste tipo muita gente nos ouviu, e, num ápice, essas pessoas também começaram a falar, e quem as ouvia também, pelo que as nossas palavras significaram o fim do silêncio do mundo.

Claro que quem defendia o silêncio tentou reagir, chegando as coisas a um ponto tal que se mandou a polícia calar as multidões que nas ruas de todos os países do mundo exigiram falar, de tal ordem que esses polícias se juntaram às multidões, e depois os exércitos que as mandaram contra elas, até que, de maneira a evitar o colapso da civilização, os poderosos do mundo decidiram falar da maneira tradicional com essas multidões, deixando-as por fim livremente falar…

E os livros de história recordarão, que tudo mudou apenas porque um dia um homem desejou ouvir a voz da mulher que amava…