Cartas...

Num museu de um continente que durante séculos foi conhecido como Europa foi descoberta uma carta com 2800 anos, a carta de um antigo soldado romano, carta que está nas minhas mãos para ser analisada e depois divulgada.

Apesar de ter passado tanto tempo é assombroso como os temas abordados na carta são temas actuais, como a saudade da família ou a descrição das rotinas de um soldado em tempos de paz, trivialidades comuns a todos os tempos desde que o homem começou a escrever.

Durante séculos a humanidade escreveu cartas em papel, cartas que depois, ao sobreviverem ao tempo serviram para os homens do futuro que as leram terem uma visão mais clara, mais exacta do que foi o passado, mais humana, fora dos registos algo frios, técnicos e distantes quer dos cronistas, quer dos historiadores, aproximando-nos assim da população que acabou desaparecer sem deixar rasto.

E as cartas de anónimos tiveram assim o condão de serem uma janela para uma realidade que de outra maneira seria impossível ver…

Mas no entanto houve um tempo igualmente antigo, mas mais recente, na qual a humanidade deixou de escrever cartas…

Nessa altura vivia-se o fascínio pelos primeiros computadores populares, que apesar de terem pouco tempo (apenas uma décadas…) depois de estarem ligados na primeira rede planetária do género, alteraram profundamente parte da socialização humana…

Parte da humanidade passou assim a viver na realidade virtual criada, cada vez mais elaborada, deixando a socialização física para um plano secundário, fazendo de tudo nessa grande rede, desde compras, a comunicar até com as pessoas que lhe eram mais próximas.

Esse tempo viveu obcecado pelo imediatismo, pelo momento presente, esquecendo que tudo leva o seu tempo a construir e assim a solidificar, sendo que acelerar processos só poderia levar ao inevitável ruir do que se desejava eterno…

E foi assim que se deixou de escrever cartas, porque se podia mandar mensagens pela tal grande rede, muito mais rápidas, muito mais imediatas, mas também muito menos elaboradas do que as cartas porque na grande rede uma das regras era utilizar o mínimo de palavras possíveis, ser o mais breve, porque o tempo era uma raridade que não podia ser desperdiçada a ler algo que podia ser resumido, sintetizado…

Nesse tempo além de se viver apenas o momento presente, também se julgava que essa tecnologia seria eterna (um paradoxo entre quem não pensava no futuro mas imaginava que o futuro seria uma mera continuação, sem interrupções, do presente…), não pensando que algo podia acontecer e tornar inúteis essas mensagens, essas “novas cartas” se a tecnologia se extinguisse…

Mas foi isso que aconteceu quando essa civilização acabou por colapsar, em parte pela sua obsessão pelo momento presente que a levou a não preparar o futuro (o que a condenou a uma existência breve…), sendo que desse tempo o número de cartas que chegou até nós é inferior ao número de cartas de tempos mais antigos…

E assim temos uma visão mais clara sobre o passado mais antigo do que do outro que na altura se orgulhava de ser “a sociedade da comunicação”…

Sem dúvida que o foi, mas como essa comunicação se baseou acima de tudo na tal tecnologia quando esta se extinguiu, pela ausência de registos que temos mais se assemelha a uma “sociedade do vazio” porque quase nada sabemos dela a não ser pelos satélites que ainda orbitam e torno de nós ou pelos raros edifícios bem construídos que são das poucas coisas que nos restam daquele tempo…

Agora ou fazer uma breve pausa no trabalho…

Agora tenho que ir escrever à minha mulher…

Por causa da investigação que tive que fazer à carta do soldado tive que me ausentar durante meses.

Claro que lhe ligo todos os dias, que falamos imenso, mas não é a mesma coisa, nunca será e por isso todas as semanas lhe escrevo uma carta a dizer como estou, a perguntar como ela está, apenas para ter o prazer de escrever tal e depois de receber a sua resposta também em papel, para ter o prazer de esperar pela carta, abrir o envelope e depois ler a sua bela letra, vezes e vezes sem conta, porque a saudade alivia um bocadinho quando vemos pedaços de quem amamos na sua letra escrita à mão, uma autentica impressão digital dos sentidos porque cada letra escrita é sentida e quer que quem a leia sinta tal…

Para coisas de trabalho utilizo a rede, mas apenas para isso, porque para tudo o resto, para as coisas mais pessoais prefiro as cartas, onde não existem nem restrições de palavras nem de tempo para as ler, e mesmo que tenhamos que interromper a leitura, sempre podemos guardar a carta, sabendo que a qualquer momento a iremos ler sem temermos que uma falha de energia nos separe das palavras de quem estimamos, dependendo apenas de nós lermos…

Porque mesmo que ela o imagine, quero descrever os meus dias, quero-lhe dar um retrato bem claro de como eles são, e quando lhe disser que a amo, quero dizer com as letras todas, com as palavras todas, sabendo que essas palavras irão perdurar bem para além das nossas vidas, imaginando que com um bocado de sorte algumas dessas cartas irão perdurar no tempo, e assim daqui a outros 2800 anos alguém as lerá e sentirá o que nós sentimos imaginará como nós vivemos, e assim a nossa existência terá feito todo o sentido, porque além de termos sido felizes alguém saberá que o fomos e saberá como o fomos…

E tudo isto apenas porque em vez de mandar mensagens em redes que certamente um dia irão acabar, escrevemos e mandámos cartas que só irão acabar quando a própria humanidade acabar…

Cartas…meras cartas mas que serão o eco do que fomos num futuro que não adivinhamos o que será mas que ajudamos a construir ao escrever as tais cartas…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 25/03/2014
Código do texto: T4742893
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