Um dia “Existi”…

No topo de uma das maiores pirâmides do antigo Egipto existe uma pequena divisão que serve apenas de suporte à grande estrutura, uma divisão muito pequena onde cabem apenas dois homens, uma divisão claustrofóbica privada de luz natural.

Na altura em que ela foi construída um homem anónimo, um dos seus milhares de operários, deixou lá a sua assinatura, a sua marca, não com a intenção que fosse vista, mas apenas para dizer que esteve ali, que fez parte da grande obra. Não é especulação dizer que essa inscrição, essa assinatura, nunca seria vista por ninguém…: sendo uma estrutura de apoio e de muito difícil acesso, aliada ao facto da construção ser um túmulo do seu rei, tal assinatura deveria permanecer anónima e esquecida até que pirâmide se transformasse em pó…

Ninguém pode adivinhar o que se passará depois de nós, ou pelo menos ter uma ideia clara de tal, e por isso esse homem não podia saber que algures no futuro a cultura passaria a olhar para os restos do passado como algo de muito precioso, especialmente se fossem restos únicos, e foi assim que a assinatura deste homem emergiu do fundo dos tempos e se transformou num tesouro, especialmente porque o seu estado de preservação era único, devido à sua fraca exposição a elementos corrosivos que acabam sempre por destruir os vestígios do passado.

Ver a sua assinatura passou pois a ser como contemplar o passado, como se se tivessem passado alguns anos depois dele ter tido lugar e não milhares, foi como se obtivesse uma imagem bem nítida desse passado e na primeira pessoa, e não que soubéssemos dele por relatos indirectos… E foi assim que pela primeira vez em mais de 3000 anos alguém viu isto, a marca de um homem de que a história não guardou memória, um homem cujo corpo se dissolveu nas areias, mas um homem que ao fazer isto de certa forma tornou-se tão imortal como as pirâmides...

E houve uma altura em que essa pequena assinatura de um centímetro se tornou tão grande como as pirâmides porque de certa forma nos aproximavam mais das pessoas do passado do que as pirâmides, porque era um registo individual e personalizado de um ser, ao contrario da construção onde estava inserida, que representava a vontade de uma civilização, e que talvez por isso era algo frio e despersonalizado, ao contrário da pequena assinatura de autor que tinha com ela toda a carga de humanidade que um registo deste tipo pode ter…

Naturalmente que ela continuou fisicamente só acessível a muito poucas pessoas, criteriosamente escolhidas, mas a sua imagem infinitamente difundida tornou-se de certa forma um ícone da individualidade do homem, da possível prevalência desta sobre a própria história…

E eu fui apenas mais um ser entre tantos seres que desde a infância fora acompanhado por aquela imagem que entretanto se tornou omnipresente, mas levei tal um pouco mais longe, sentindo-me de tal ordem fascinado e seduzido por aquela marca de imortalidade, desejando secretamente que um dia pudesse deixar uma marca desse tipo para alguém eventualmente encontrar muito depois de nada restar nem de mim nem da minha civilização, porque de certa maneira esta seria uma maneira de dizer “existi”…

E de certa forma trágica esse desejo um dia tornou-se numa realidade…:

A minha época vivia tempos conturbados, não em termos tecnológicos ou sociais, mas em termos de recursos naturais, da natureza em si, pois o planeta perdera há muito a capacidade de albergar humanos, e desde há algum tempo que fora localizado um novo lar para a humanidade e que se estava a preparar a sua partida.

Toda a gente sabia tal, estávamos já mentalizados, mas como desde há gerações que anunciavam tal e que nada acontecia, pensámos de certa forma que a tecnologia poderia reverter o processo…

Mas não pôde, e como a degradação se tinha apressado de forma dramática, tivemos mesmo que partir e abandonar pedaços da cultura humana que não poderiam ir connosco, como o eram os grandes monumentos humanos…

Á ultima dúzia de seres que deveriam abandonar a Terra em último lugar foi concedido o desejo de visitarem um local à escolha por uma derradeira vez.

Eu tive a sorte ou o supremo azar de fazer parte desse grupo, pois a minha função era selar a ultima base humana do planeta.

E mal me revelaram a possibilidade de escolha de um desejo não pensei duas vezes, e que pedi para ir à tal divisão misteriosa onde estava a tal assinatura…Devido à inacessibilidade desta e ao pouco tempo que dispúnhamos só poderia estar alguns minutos no seu interior…

Era o tempo de que precisava…

E assim, e com imenso esforço, me consegui inserir no compartimento e durante alguns minutos fiquei mergulhado no mais profundo silêncio, na mais profunda escuridão, só com um ínfimo foco de luz com que iluminei a tal assinatura milenar.

Quando faltavam apenas alguns segundos para o meu tempo acabar, em segredo tirei de um bolso uma caneta e em segredo escrevi o meu nome e a data daquele dia bem ao lado do registo do antigo egípcio.

As pirâmides ainda iriam durar um tempo imprevisto, mas certamente maior do que a espécie humana, que como tudo no universo se iria extinguir, lá ficariam muito depois de nós, eventualmente visitadas um dia por uma espécie de que desconhecíamos sequer a existência, uma espécie que ainda não tinha nascido, uma espécie exterior ou interior à Terra, uma espécie que um dia poderia ver as duas assinaturas e de certa forma as pudesse interpretar, sem conhecer a sua origem, a sua história, percebendo apenas naqueles pequenos registos que em tempos existiram dois seres apagados da face do universo, cujo seu registo, a sua marca no tempo, a sua marca no universo estava ali, perante os seus olhos…

As probabilidades de tudo isto acontecer são ínfimas, muito remotas, mas pelo menos tentei repetir o milagre daquele operário, tentei que alguém um dia soubesse que eu simplesmente

“Um dia “Existi”…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 29/02/2012
Código do texto: T3527121
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