O JANTAR DOS REIS (Ou o Jantar dos Imortais***)-Revisto e profundamente alterado…

A acção desta pequena história decorre algures na segunda metade da década de 90.

Confesso que sei o ano, o mês, a noite da acção dos acontecimentos, mas prefiro obliterá-los para que a história não se cole demasiado a certas marcas que a tornariam datável e, a meu haver, menos bela, menos atractiva…Ela por si só é bela, é das tais histórias que se recordam de forma recorrente, mas numa história destas é obrigação de quem a escreve misturar a realidade com a ficção e vice versa, porque o que realmente passou pertence apenas aos intervenientes e aos que nos são próximos, e assim esta história com o tempo vai-se transformar numa lenda, e com mais tempo num mito…Só violo esta convenção ao dizer que os telemóveis hoje tão pequenos, tão baratos, tão comuns, no tempo desta historia eram um bem ainda raro e que tinham metade do comprimento da pasta dos estudantes de Coimbra (uma folha A4…)pois esta história fala de um jantar de um conjunto de estudantes de Coimbra, um jantar dos meus melhores amigos que naquela noite foi ainda mais especial, foi

O Jantar dos Reis

Naqueles tempos o grupo de 7 convivas ou estava no inicio, meio ou fim dos cursos, sendo que a maioria de nós se conhecera nos tempos de Liceu e prolongara a amizade para a Universidade em cursos muito heterogéneos.

Todos sem excepção éramos jovens promessas que o tempo veio a confirmar, todos éramos mais ou menos da mesma idade e quase irmãos pelos laços que se tinham estreitado primeiro no Liceu, primeiro nos primeiros copos, nos primeiros cigarros, nos primeiros desabafos dos amores que eram para sempre mas que se ficaram pelo inicio da idade adulta…Laços que criados na altura certa provaram serem para sempre…

Mas não falemos do presente, ou futuro como lhes quiserem chamar, falemos desse passado, falemos do Grupo.

Todos namorávamos, ou estávamos prestes a entrar nestas lides, com namoradas temporárias, namoricos de faculdade que o tempo veio provar ténues, mas, apesar de adorarmos as namoradas elas nunca entravam quando o Grupo estava reunido, coisa de garotos, nada machistas, mas que achavam que a festa com garra solta deveria ser feita longe dos olhares delas, mas não das suas consciências, pois elas conheciam-nos de ginjeira e já sabiam o que se iria passar quando o Grupo se juntava…

Se a memória me atraiçoa de vez em quando, esta é uma das ocasiões pois desconheço o motivo daquela jantarada…Sei apenas que foi no fim da primeira época dos exames e antes da Queima das Fitas, a maior festa de estudantes do mundo e onde era raro andarmos juntos pois andávamos nos copos a noite inteira ou com as namoradas ou com os colegas dos respectivos cursos.

Sei sim que o jantar e o local foram preparados com antecedência: teve lugar numa enorme casa de campo de um de nós a meio caminho da praia mais próxima da cidade e suficientemente isolada para podermos espraiar as gargantas e falar bem alto sem incomodar a vizinhança que na cidade teria certamente chamado a polícia por causa do barulho como já tinha acontecido algumas vezes, e como de água fria o gato estava escaldado, o local do grande jantar fora escolhido devido à sua insularidade.

Pronto, confesso que não éramos particularmente discretos, mas éramos bons rapazes que o tempo veio a transformar em bons e honrados homens, orgulho das famílias e cidadãos respeitáveis apesar da centelha de um certo devaneio não ter desaparecido ainda de todo de nós…Mau, lá estou eu no presente…Voltemos ao passado:

Na altura só dois é que tinham carta e só um é que dispunha de carro próprio e por isso se enfiaram 7 almas num carro onde mal cabiam 4, com mantimentos para uma noite de farra, de muita farra…mantimentos que seriam de dias para pessoas mais dentro da norma, mas nós, graças aos céus, escapávamos a essa maldita norma…

Como os trocos não abundavam e a despesa tinha de ser distribuída, ao invés da típica cerveja, optamos por ir a uma Cooperativa comprar vinho que era bom mas muito barato; ora ninguém sabia ao certo onde era a tal Cooperativa…Fomos andando de carro devagar a olhar para todos os lados até que um de nós a viu à distância, no meio do mato e de caminho incógnito, o que não preocupou o condutor pois de imediato viu um atalho que na realidade era um caminho de cabras que fez um destes males à suspensão da viatura embora ninguém se preocupasse verdadeiramente com o assunto ante a perspectiva de vinho barato…Ora a meio caminho um de nós exclamou apontando em frente:

-Galinholas selvagens, são deliciosas assadas!!!

Ora o autor destas palavras era o cozinheiro de serviço e conhecido pelo seu bom gosto gastronómico, e essas palavras soaram a ouro no bolso de pedintes: de imediato e sem dizermos nada, saltámos do carro e desatámos a correr em direcção ao hipotético petisco, tendo certamente batido o recorde de 100 metros da especialidade (se é que ela existia…) e já a deitarmos os bofes quase para fora estávamos quase a alcançarmos os galináceos quando estas desataram a voar…

-Pois, desculpem, esqueci-me que elas voam…

Exclamou o nosso cozinheiro de imediato fuzilado pelos nossos olhares cansados pela correria, de tal ordem que se fosse literal a expressão de que o olhar mata, teríamos ido ao enterro dele como réus condenados e não ao jantar…

Mas paciência, esquecemos este contratempo quando ele pagou parte generosa do vinho e rumámos à casa de campo, pois a noite começava a cair e era tempo da festa começar.

Apesar de algo desbragado, o jantar tinha regras pois tratava-se de uma espécie de concurso “enfarta-brutos”: era um jantar a pontos: cada copo de vinho valia 1 ponto, cada colher de arroz outro ponto e cada colher de feijoada 2 pontos, e cada copo de bebidas brancas (subtraídas “ilegalmente” à garrafeira do dono da casa) 4 pontos sendo que no final da noite ganhava quem tivesse acumulado mais pontos…

Desde o inicio que para mim a competição estava destinada a uma mera luta pelos últimos lugares, porque por norma comia pouco e ainda que bebesse uma certa quantidade apreciável, estavam em competição portentos da área, pelo que para mim, era mais uma questão de honra ir comendo e bebendo mais empurrado pelas insistências dos meus mestres, do que pela minha vontade…

E a coisa corria até normalmente, lareira acesa, que o frio ainda se fazia sentir apesar da proximidade da praia e da primavera, jantar findo, passámos para os cafés e para a mesa de bilhar, sempre de copo numa mão e caderno dos pontos noutra, noite sem sobressaltos até que cai na asneira de bem bebido dar uma opinião mais pessoal sobre um assunto tabu para um deles…éramos bons amigos, mas aprendi nessa ocasião que mesmo entre os melhores dos melhores há sempre um assunto em que não se deve tocar…A língua caiu pois nos caminhos erróneos da verdade e foi ver esse amigo meu, que era bem maior do que a minha pessoa, largar o taco de bilhar e dirigir-se a mim com intuitos nada católicos, pois o perdão era coisa comum entre nós mas não suportou o que eu disse…Foi o pandemónio com três a segurá-lo e dois a mim que não me ia dar por vencido na derrota de punhos adivinhada…A coisa passou quando me mandaram para o jardim refrescar as ideias e a língua enquanto o resto consolava o ofendido; como não sou tipo de ficar parado muito tempo e muito menos ébrio, descobri uma bicicleta (com pneus furados…) e decidi contemplar as primeiras luzes da madrugada com uma voltinha…em contra-mão numa estrada supostamente vazia mas que se encheu com as luzes de um carro que me obrigaram a desviar para a berma, mato a dentro e a espalhar-me a comprido…

Por estranho que pareça foi este incidente que veio estabelecer a paz entre nós, pois cheguei à casa com um pneu torto e bem desarranjado e ante o espanto dos outros lá contei a minha aventura que resultou num rol de gargalhadas e o regresso à fraternidade momentaneamente perdida…

A competição aproximava-se do fim com o início da madrugada, mas ninguém desarmava a luta, embora os lugares já estivessem destinados, sendo então que perdi o meu antepenúltimo lugar – Meio enjoado fui a uma das casas de banho refrescar a cabeça com água, e enquanto o fazia a minha visão periférica detectou uma sanita e a vontade surgiu e se bem o senti e pensei, bem o fiz e despejei parte do pecúlio da festa acumulado naquela noite…

A fama de ingénuo que tinha ganhou proveito quando cheguei à sala onde estava o cozinheiro e meu padrinho de faculdade além de contabilista dos pontos e em vez de estar bem caladinho, perguntei timidamente o que acontecia se eu “vertesse” os pontos…Ele que não era nada discreto de imediato começou a berrar “ – O Miguel perdeu, vomitou os pontos!!!” sendo que todos se riram e eu lá fiquei em último lugar e na memória da malta, de tal ordem que no ano de ir no carro da Queima da Fitas e quando me fizeram a caricatura, em lugar de destaque lá estava colado o papel dos pontos :

1ºLugar - Afonso – 120 pontos, 2º Lugar – Luís – 100 pontos 3º Lugar – Carrilho 80 pontos 4ºLugar Álvaro 75 pontos, 5º Lugar – Carlos 70 pontos – 6ºLugar Fernando 50 pontos e último Lugar – Miguel – Vomitou os pontos!!! Tal e qual e com pontos de exclamação e tudo…

O mínimo que posso dizer é que tal ainda constituiu motivo de conversa e de gozo cada vez que falo com alguns deles…

E a coisa amainou sendo que todos se deitaram dai a pouco, finda a competição, menos eu que fiquei destinado a arrumar a cozinha e os despojos da batalha gastronómica, o que fiz até à altura em que chegaram os pais do dono da casa (e assim os efectivos proprietários…) e ante o espanto de ver 3 andares cheios de garrafas vazias (não tivera tempo de desfazer as provas de tamanha noite…) me exclamaram que eram muitas garrafas bebidas para tão pouco tempo e tão pouca gente, ao que eu envergonhado só pude responder que também tínhamos comido muito, como se tal servisse para alguma coisa…Ou seja este pequeno diálogo entrou para a lenda da noite…

E parece que aquele ano estava destinado a grandes noitadas, pois um dos participantes fora nomeado pela Comissão da Queima das Fitas Delegado do Baile de Gala e do Chá dançante, os eventos mais caros da festa, o que resultou em entradas gratuitas para o grupo inteiro, bem como imensas sanhas de cerveja, o que, como podem imaginar tornou aquela Queima das Fitas a mais desbragada de todas que fizemos e tornou aquele ano de facto o nosso Ano dos Reis pois fomos tratados como Reis com acesso até à zona VIP onde circulavam os artistas políticos e outras pessoas célebres convidadas para as festividades…

Curiosamente e pelas voltas que a vida dá nunca mais nos juntámos assim, enquanto grupo pois em breve tínhamos acabado os cursos e rumado para diferentes partes do país…sendo que os encontros passaram a ser de pequenos grupos mas nunca mais do Grupo daquela noite…

A única e última ocasião em que estivemos todos juntos foi há quase 10 anos no casamento de um de nós, mas tanta coisa mudou desde ai…Todos trocámos de amores, alguns se casaram com os novos, e poucos tiveram filhos, todos continuaram com sucesso nas respectivas profissões, menos eu que de jovem promessa continuo uma eterna promessa em tudo o que estou envolvido, apesar de tardar em confirmar as expectativas em mim colocadas e apesar de estar menos jovem…

E Aquele Jantar de facto foi o ponto de partida para as nossas vidas de adulto, reflectiu o que se ira seguir nessas vidas, confirmou o carácter de cada um, confirmou que os laços que nos uniam seriam para a vida e não para ficarem como mera recordação, mais uma, dos tempos de estudante, confirmou que a verdadeira riqueza, o verdadeiro valor de um homem está no seu carácter, sendo que tudo o resto passa por ser irrelevante…

Por isso naquela noite fomos soberanos, fomos maiores, e a vida que se seguiu só confirmou tal, e por isso aquelas horas ficaram na nossa vida como:

O Jantar dos Reis, o último Jantar dos Imortais

Imortais ***- Termo pelo qual designo os meus melhores amigos

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 29/11/2011
Reeditado em 29/11/2011
Código do texto: T3362712
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