Um Homem…apenas um mero Homem…

Numa época bem delicada, numa época em que as crianças eram mais desprotegidas do que na actualidade, especialmente as de classes mais baixas, onde o trabalho infantil era uma norma de sobrevivência familiar e a escola se existisse ficava pelas primeiras letras, o indispensável para possibilitar uma melhor orientação na vida mas pouco mais do que tal, porque o magro salário do trabalho de uma criança poderia ser a diferença entre a fome da família no seu todo, nessa época que julgamos distante, houve um homem que ainda antes de ter meia dúzia de anos de vida fazia longas caminhadas na mais profunda escuridão de bosques, quer fosse verão, quer fosse inverno, porque apesar de ser amada pela família, por vezes havia que sair da aldeia àquelas horas e aquela criança era o único elemento disponível para ir buscar algo ou simplesmente para dar recados dos quais dependia o bem estar dessa família…porque por vezes ir buscar um medicamento ou simplesmente ir até onde houvesse um telefone para chamar um médico poderia significar a sobrevivência de alguém, e assim esse ser pequeno cheio dos medos que todos temos naquela idade aventurava-se na natureza escura e seguia um caminho secular apenas com o tacto dos seus pés descalços…o medo era primordial, mas a família era mais importante que esse medo…

Esse homem conseguiu estudar um pouco, pois a família prosperou ao ponto de lhe deixar ir além da escolaridade básica, apesar de a ter feito sempre a trabalhar, e assim baseado no exemplo de um parente mais abastado, apreendeu algumas artes da medicina, e como esta faltava nos campo, aprendeu a vacinar pessoas, e assim nos rudimentos, nos primórdios da medicina moderna a troco de apenas a sua vontade desinteressada de ajudar o seu próximo, o seu igual, no final da dura lida dos campos ele aventurava-se nos mesmos caminhos de infância e ia fazer o que o estado, o governo deveria fazer, mas que não fazia porque havia um povo maior e um povo menor, e o menor nascia, vivia e morria entregue a si próprio menos na altura dos impostos, altura em que o estado se lembrava da existência desse povo, ignorando-o em todo o resto…E era nesse todo o resto que este homem aparecia, pois além de vacinar, de curar, distribuía alguns dos proventos da agricultura que se tornara um pouco mais próspera do que a dos vizinhos, ele tentava ajudar e minorar a miséria de todos apenas pelo acto solidário de ser útil…Se calhar ele e a sua família poderiam ter enriquecido ou pelo menos prosperado um pouco mais se não partilhassem os seus proventos, mas a riqueza era algo que francamente não lhe interessava, o que lhe interessava era o bem estar do próximo, e essa sim, era a maior de todas as riquezas de um homem…

Esse homem na época em que alguns decidiram mudar o destino da nação e trocaram os reis pela república, por ser bom católico e isto de ser católico estar associado ao regime caído em desgraça, no calor de uma noite foi anonimamente espancado por alguns a quem ajudara as famílias anos antes, alguns que o julgaram morto pelos maus tratos infligidos e que se gabaram de tal na aldeia, orgulhosos do facto, alguns que ficaram espantados porque no dia seguinte esse homem ferido estava de volta ao mundo, a fazer o que sempre fazia e a participar na vida comunitária da aldeia, inclusivamente na ajuda à igreja que não se atemorizara e que continuava no seu local apesar da raiva dos fanáticos…

Um homem que na altura da última guerra viu os seus proventos algo espoliados por um regime ainda mais cego do que o anterior, e que foi aos campos buscar além dos impostos também alimentos para auxiliar o esforço de guerra de um aliado que representava o lado mais negro da humanidade, tendo como troca a esse roubo a não participação na mesma guerra, mas deixando o seu povo com fome…Mas que não foi maior porque esse homem partilhou o que tinha e que não tinha com as famílias que podia ajudar na medida do possível…

Esse homem era imensamente duro, esse homem ainda antes das universidades se encherem de democracia e de milhares de jovens cuja prosperidade democrática possibilitou que fossem à universidade, numa época em que o ensino superior era de meras elites, esse homem percebeu o rumo dos tempos que se iriam seguir e fez o prognostico actual (louco na altura…) que os licenciados haveriam um dia de serem guardas das fábricas, isto num tempo em que uma licenciatura representava status social e riqueza quase certa…décadas antes de tudo voltar à mesma miséria de todos os tempos do meu povo, ele viu tal…

Mas na dureza do seu prognóstico, da sua visão fria de uma realidade, esse homem era um pai terno, um marido dedicado e com o tempo um avô adorável…A dureza da vida moldara-lhe o carácter, mas não lhe apagara os afectos, antes sublimando estes…

Esse homem morreu muito tempo antes de eu nascer, mas vim a conhecer esse homem nas histórias que se contam e na descendência, que lhe honrou o carácter, que reproduziu a sua forma de estar, vim a conhecer esse homem nos gestos, nos olhos de quem eu mais amo, pessoas que acabaram por partir, mas pessoas que também estão por cá ainda hoje, reproduzindo o tal carácter, a tal forma de estar, esperando que tal prolifere nas gerações que as irão suceder…

Era apenas um Homem, um mero Homem, mas se o mundo fosse composto por mais homens como ele, se homens como ele fossem a regra e não a excepção, este mundo seria sem dúvida um belo local onde viver, e nós não teríamos de nos esforçarmos tanto para o mundo ser belo, ele seria naturalmente belo…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 27/11/2011
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