A nossa voz, o nosso eco na Eternidade…Versão Conto

Diz-se que certo tipo de seres morrem quando o seu sonho principal morre…

Eu comecei a morrer a meio do século que se seguiu aos dos primeiros tempos de conquista do espaço…

Comecei a morrer no dia em que a humanidade chegou a Marte…

Nessa altura apercebi-me cruelmente da minha mortalidade quando constatei que não estaria cá para o próximo passo realmente significativo do homem…

Mas renasci ao pensar naquilo que restará do homem muito depois deste desaparecer da face do Universo…

Desde garoto que os filmes da ida à Lua faziam parte tanto do meu imaginário como das minhas preferências, de tal ordem que quando estreavam filmes novos, os meus interesses incidiam de imediato naqueles que contavam histórias das odisseias espaciais, ou aquelas que iríamos ter…O tempo passou, eu cresci, ganhei outros interesses, mas o gosto por esse tipo de filmes manteve-se intacto, o que era por vezes problemático quando alguma namorada queria ir ver a última comédia romântica que tinha acabado de estrear, ao passo que eu queria ir ver o que já adivinham…mas acabava por ceder a ela, e enquanto ela se deliciava com esse filme, eu com ela, mas a minha cabeça estava na sala ao lado, onde estava esse filme sobre o espaço…E a par com o interesse, fiquei apaixonado pelo próximo passo sério, a ida a Marte…

Mas a vida de um adulto raramente anda de mãos dadas com os seus sonhos de infância, e por isso cresci e fiz-me homem, marido, pai de família olhando para outro lado, mas não deixando de prestar uma atenção particular às noticias sobre a exploração espacial tendo o sonho secreto de ser jovem e de assistir a essa aventura sonho de repetir as sensações dos meus avôs no Junho de 1969, sonho de ter a idade que os pais dos meus pais tinham quando a Lua ficou mais perto, sonhava em ter o seu entusiasmo ingénuo de ver mais uma fronteira cair e a seguir a ela outra, e de estarmos vivos para presenciar tal…Com passos bem lentos lá se ia caminhando em direcção às estrelas, mas nada que se equivalesse à dinâmica dos anos 40, 50 e 60 do século onde o homem tocou um pouco a sério as estrelas…Mas do mal o menos, o irritante imobilismo das ultimas décadas desse século e das duas primeiras do que se seguiu foi deixado para trás, e de facto caminhava-se em vez de se brincar aos astronautas na orbita terrestre, com viagens domesticas até às estações espaciais que se construíram, mas que de facto quase nada representavam em termos de corrida espacial…

Passos lentos para o tempo dos homens, passos tão lentos que comecei a envelhecer fisicamente, observando a evolução do tempo nos olhos da minha mulher e nos corpos dos meus filhos, que entretanto cresciam.

O sonho foi por fim alcançado na altura em que não eu, mas os meus filhos tinham a idade que os meus avós tinham quando se tocou a Lua pela primeira vez…

Nessa altura morri, ou comecei a morrer, por muito paradoxal que se possa parecer…

Senti um vazio porque não assistiria ao maravilhoso que se iria seguir…de pouco me servindo frases paliativas como “O homem que irá viver em Marte já nasceu” ou “ os nossos filhos ou parentes mais jovens assistirão a tal, poderão viver e morrer lá…” etc…perdoem-me o egoísmo, mas gostava de ser Eu e não Eles…

Claro que continuava a ter sonhos, objectivos, por exemplo, queria atingir a idade da reforma e gozar da companhia dos meus netos que poderia vir a ter, gostava de os ver crescer como vi crescer os meus filhos, mas o meu primeiro sonho morrera, e eu com ele…

E foi assim que me tornei um velho, e que comecei a reflectir sobre coisas que se calhar deveria ter reflectido uns anos antes…dei comigo a filosofar sobre coisa nenhuma, como por exemplo a precariedade da vida, a precariedade de tudo isto, o quanto é vão tudo isto, a inutilidade de tudo isto, das guerras, das lutas, do empenho, da perseverança…porque o homem está e estará no universo uma mera fracção da duração deste, porque será apenas uma entre milhares, ou se calhar milhões de espécies que estão espalhadas por milhões de galáxias…

Mas parei às tantas este tipo de filosofia mais…destrutiva…e parei de envelhecer…

A seguir a Marte virá outra fronteira, e depois outra, e mais outra, e por muito que dure a humanidade, ela vai-se extinguir como tudo se extingue no universo, e esse sentimento de não assistir à chegada a mais uma fronteira existiria sempre, independentemente do tempo em que nascesse, porque pura e simplesmente o Universo é demasiado vasto para ser totalmente alcançado e apreendido pelo conhecimento humano…

Sim…estamos cá pouco tempo, a espécie estará cá pouco tempo, mas o tempo que estaremos que o dediquemos a algo de útil, a algo de bom, a algo que nos orgulhemos que se recordem de nós, a algo que eleve esta espécie humana ao patamar de quem deve, merece ser recordado…Tentemos pois elevar a nossa existência com algo de belo, façamos mais poesia do que armas, façamos mais amor do que alimentar ódios, façamos mais bem do que mal, sejamos mais solidários do que egoístas, pintemos mais quadros do que murais, façamos mais música e carreguemos menos na buzina dos carros em sinal de protesto, amemos mais e pensemos em mais formas de ampliar esse amor, façamo-nos amar e seremos amados, façamos por sermos felizes e seremos nem que seja pelo esforço de o tentar, mesmo quando o céu está cheio de nuvens, porque há sempre um raio de sol que fura a cortina de nuvens…Sejamos ingénuos e menos cínicos, porque prefiro ser ingénuo e acreditar em mil mentiras, do que ser lúcido e me tornar um cínico que envelhece prematuramente pelas amarguras em que nos deixamos arrastar, sonhemos em vez de dizer aos nossos filhos que tal é um disparate, incentivamos esse sonho, façamos que eles sonhem mais, e sobretudo temos que dar sonoras gargalhadas, porque o riso é a coisa mais humana que há, e duvido que mais raça alguma no universo tenha o riso como sua marca de espécie…Prefiro ser recordado como um homem que ria demasiado do que como um homem que estava sempre a chorar…

Tudo quanto o homem fez e fará é transitório, é temporário, nós só não concebemos e admitimos tal porque a escala de tempo humana é infinitamente mais reduzida do que a do Universo…Porque a maior parte das nossas realizações, ou por vezes mesmo simples objectos, duram mais do que o tempo da vida de um homem, e logo, de certa forma os consideramos de forma inconsciente imortais…Mas nada, nada dura para sempre…no tempo uma folha de papel terá a mesma importância da de uma barragem…é uma mera questão de tempo até se decomporem, ou serem recicladas pelo homem para darem lugar a outras que por sua vez serão substituídas por outras…As nossas amadas obras de arte, sejam quais forem, são feitas de elementos algo delicados, ou então feitas de elementos que precisam da constante manutenção humana para serem preservadas…Os maravilhosos quadros que encantam gerações são o elo mais fraco da criatividade humana, pois basta um pouco de humidade sobre elas para em pouco apodrecerem…até mesmo a pedra das quais são feitas estatuas é corrompida pela natureza, e racha, e quebra, e se desfaz em pó…mesmo Deus…se Deus for um conceito humano enquanto entidade, até Deus desaparecerá com o desaparecimento humano, pode existir, mas enquanto o que representa para nós desaparecerá connosco…até mesmo elementos primordiais como o ouro ou o cobre estão condenados…durarão o tempo da Terra, mas quando esta for engolida pelo nosso sol, até esses elementos voltarão a sua condição de nada…

Mesmo as sondas que mandamos explorar o Universo e que muitos dizem ser a nossa marca enquanto espécie estão destinadas a desaparecer…mesmo que escapem a possíveis tempestades solares ou outras, poderão e irão durar milhares, ou possivelmente milhões de anos, mas com o tempo também elas se transformarão na poeira do espaço de que todos somos feitos…Nenhum objecto ou obra feita pelo homem irá subsistir…

Mas…

Não sei se sabem, mas as ondas de rádio que emitimos desde o século XIX viajam pelo espaço e lá estarão muito depois de qualquer vestígio humano se apagar, essas ondas lá estarão até ao fim dos tempos, até ao fim do Universo…e entre tantos sons humanos preferiam que outros seres captassem, muito depois da nossa extinção como marca humana o troar de um canhão, um grito de dor ou uma…gargalhada…?

A minha resposta é evidente…e enquanto o mundo continua a avançar, vou fingir que sou imortal, vou ali, olhar o céu, esquecer tudo por instantes, vou olhar para o céu das estrelas deste fim de verão, vou sonhar, e enquanto olho para essas estrelas que nunca irei realmente alcançar, vou dar uma ruidosa e bem disposta…gargalhada… A nossa voz, o nosso eco na Eternidade…

Conto vagamente inspirado no Livro “O Mundo sem Nós” (“The World Without Us”) de Alan Weisman 2007

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 17/09/2011
Reeditado em 28/02/2012
Código do texto: T3224939
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