Estou a ler um Livro…

Há uns anos, não muitos, esta frase seria banal, tão banal que ninguém iria reparar nela, mesmo que escrita em enormes letras num qualquer anúncio electrónico exposto numa cidade, local onde, pela sua visibilidade aliada ao acto incutido de olhar para estes anúncios. Pensariam ser apenas mais uma frase publicitária, e não lhe prestariam mais atenção que prestam a outros tantos anúncios…

Um acto banal durante imenso tempo, mas nos novos tempos tornou-se incomum, e arrisco mesmo a dizer raro, pelo menos na forma clássica com que o faço, a forma tradicional de ter entre as mãos um livro de papel, de sentir nas mãos a sua rugosidade, de sentir o seu cheiro bem característico, especialmente se tiver alguns anos que o impregnou de cores e de outros cheiros que não o clássico que qualquer coisa nova tem.

Não é uma primeira leitura, é uma terceira leitura, e por isso ao visitar de novo cada página revejo nelas um pouco da minha história, pois quase cada página tem uma marca que lhe deixei, ou por descuido, ou para sublinhar uma passagem, uma frase, um conjunto de frases, ou até mesmo um parágrafo que me marcou, mas que depois, no meio de tanta coisa para fazer, esqueci que era importante, ou então recorri à pesquisa rápida e infinitamente mais fácil na grande rede, em busca dessas frases que alguém compilou e colocou à disposição de toda a gente, atalhando o trabalho de ler, e fazendo com que a maior parte faça boa figura de sábio por citarem certos autores, embora na realidade não façam a mínima ideia de quem sejam, citando porque fica bem, e não por amor ao verdadeiro conhecimento…

Felizmente que o hábito da leitura não se perdeu, mas perdeu-se o hábito de se ler um livro no registo clássico, de papel, de tal ordem que os livros voltaram aos tempos primordiais, onde eram feitos de maneira artesanal, ou então só podiam ser encontrados em determinadas bibliotecas publicas, as raras que ainda os mantiveram, pois a maioria para poupar tanto no espaço como nos ordenados dos funcionários que os deveriam manter, substituiu esses livros pelo registo digital.

Então passou a ser comum, a ser regra pequenos rectângulos electrónicos onde se liam tanto jornais como livros, como revistas ou demais publicações, como ao mesmo tempo se navegava na rede, se via televisão, se telefonava etc…

O melhor de todos os mundos em simples e algo baratos aparelhos, uma generalização cultural, civilizacional e tecnológica que todos saudaram menos quem se manteve fiel aos livros antigos e legou essa fidelidade e os livros que restaram aos filhos, e depois estes aos seus filhos até que a memória de ler um livro de papel passou a estar em filmes de época que passavam nesses mesmo aparelhos que até mataram o cinema, ou então restava nos descendentes dos amantes dos livros…

E apesar de ter crescido neste meio, apesar de ter um aparelho desses, utilizo o aparelho para tudo menos para ler um livro…Claro que por isso, por primeiro levar um livro para a escola, depois para a faculdade e por fim para o emprego, fez de mim alguém à parte, uma espécie de excluído, apesar de dominar o mundo da mesma forma dos outros, mas o facto de me entreter num canto a ler um livro enquanto os outros e as outras nesse mesmo canto faziam o mesmo com os tais aparelhos, tornava-me diferente, a visão de alguém com algo de arcaico nas mãos era algo de desagradável à vista, e de tal ordem que quando por descuido deixava o livro em qualquer lugar, ninguém lhe pegava, parecendo ter uma espécie de repulsa, e mesmo de nojo por aquele objecto de textura característica e diferentes aromas.

Até que um dia algo aconteceu e veio mudar tudo…

Nas notícias disseram ser uma espécie de tempestade solar, que iria pura e simplesmente parar toda a tecnologia durante semanas, ou mesmo meses. Claro que era algo de temporário, claro que passaria, e claro que as autoridades garantiram ir tomar medidas protectoras e tal não aconteceria…

Mas o que se pode fazer contra a força de um sol…?

E a tempestade de facto veio, e a tempestade tornou a electrónica ou a electricidade inútil…até mesmo as baterias foram neutralizadas, o mundo pura e simplesmente se apagou, porque a maior parte do mundo era de facto tecnológico…

Mas não me senti afectado, pois em diversas prateleiras lá os tinha, os excluídos do mundo, imensos excluídos que passaram a serem os melhores amigos da minha família neste tempo em que nada funciona…

Os dias, as noites passaram a serem preenchidas pela leitura, e por isso nos sentimos preenchidos por essa leitura, reforçada por apelar à nossa imaginação por não ter imagens interactivas que atalhavam e imaginação e nos descreviam o que estávamos a ler, pois ali estávamos nós a ler e a imaginar o que líamos, pois só nos restava tal…

Mas de certa forma nunca nos sentimos tão felizes, pois esta pausa algo breve na vida fez que tivéssemos tempo para nos dedicarmos a esses, a estes livros…

E os outros, que estarão a fazer…?

Desprovidos da sua electrónica, dos seus suportes digitais, desprovidos até da sua socialização…?

Se calhar estão a reaprender o que perdemos numa evolução demasiado acelerada, demasiado repentina, se calhar estão a olhar uns para os outros à espera de uma resposta que os leve a ocupar este súbito ócio, a procurar respostas retóricas, porque as respostas são lógicas e quase instintivas, estão a reaprender a viver, não sei, só sei que eu continuo a viver, mais do que eles, estou a ler um livro…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 04/09/2011
Código do texto: T3200511
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