quarenta dias | parte 1 | capítulo 2

a incursão na leitura

deu-se por meio de gibis

chegou a rabiscar folhas

cujo destino fatídico

foi um só:

parar no cesto do lixo

 

brincava de novela

com a irmã pequena

adultos viam duas camas

dispostas lado a lado

apinhadas de brinquedos

elas viam uma cidade inteira

com casas e famílias

vivendo suas vidas

um tanto quanto fora do comum

 

você é café-com-leite

barrada do clube da luluzinha

divertia-se com os garotos

desciam o morrinho de barro

no cavalinho de guerra

inventavam expedições

o papo fluía sem restrições

 

a professora desaprovava

aquilo não era saudável

tantas reprimendas por nada

amigo é amigo e ponto final

 

na nova escola seria igual

café-com-leite do mesmo jeito

sem ninguém para brincar

pelo recreio a perambular

buscando um lugar para lanchar

 

as tardes eram as melhores

com a inocência ainda no auge

a magia envolta no coração de tinta

por mais que quisesse

havia uma trava que a impedia

de transformar brincadeiras

em histórias escritas a punho

 

desejava ler O Gato de Botas

toda quinta-feira era igual

a tia da biblioteca

e o seu discurso pronto

até que chegou o dia

e mal podia esperar para ler

 

e a mesma menina

protegida pela

imaginação

conheceria a face

amarga

de uma moeda

inglória

a de ser

substituível

 

adoecida pelas comparações

pela aparência julgada

sob o crivo daquelas meninas

ela estaria sempre errada

todos aqueles castelos montados

sob expectativas grandiosas

ruíram na reta final do ano

 

a sede de viver outra vida

outra vida sem ser a sua

ter outro nome, outra sorte,

um talento muito especial

 

padecer à insignificância

ceifava a autoconfiança

 

seria a jeca

o membro avulso

de um quinteto

inconstante

onde o ter

era superestimado

e o ser

tinha critérios

não bastava ser

se o ser

fosse desprovido

de qualquer proveito

 

por melhor que tentasse ser

encontravam sempre um defeito

esforços vistos com indiferença

o sorriso nem sempre resistia

havia muita dor escondida

por trás das travessuras

da ânsia inquietante por validação

 

nada a prendia lá

nada mudaria

e de qualquer forma

a sua vida mudaria

em quarenta dias.

Marisol Luz (Mary)
Enviado por Marisol Luz (Mary) em 12/01/2022
Código do texto: T7427508
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.