quarenta dias | parte 1 | capítulo 1

Sinopse: Eis a narrativa de uma garota cujo coração era de papel, em cujas veias percorria a poesia, que calada contemplava a vista do mundo pela janela do carro e mesmo tentando se conformar com a ideia de que não poderia voar, criou as próprias asas assim que permitiu o fluxo livre e puro de personagens, que dentre tantas meninas cujos corações eram de papel, a escolheram.

Pertinentes ciclos de quarenta dias marcaram os primeiros passos de uma inesquecível incursão. A escolha dos versos dentre tantas outras formas diz respeito à franqueza com que a singularidade desta história traz consigo.

 

 

riscando um graveto na areia

escreveu o próprio nome

antes de entrar na escola

habitava nela a vocação

para contadora de histórias

 

morava com a família

numa vizinhança única

os feirantes acordavam

tarde da noite

chuchu dava na cerca

do lado direito a granja

do esquerdo as crianças

adolescentes curtiam poperô

cachorros sem lar

faziam da rua de barro um lar

 

e um lar nunca está completo

sem um amigo de quatro patas

equilibrado nas patas traseiras

era o dobro do tamanho dela

mas todo desengonçado se deitava

no colo pequeninio dela

e sonhava os mais lindos sonhos

 

conheceu o Papai Noel

o coelhinho da Páscoa

protegia a rua de ladrões

como aqueles que apavoraram

os humanos que tanto amava

roubaram deles pertences

cujo valor superava o monetário

roubaram parte da história

 

era preciso ter um cão de guarda

de porte imponente

grande o suficiente

para aquela casa proteger

 

bastava um latido de Tigre

e eles estariam encurralados

ninguém seria bobo de encarar

um fila brasileiro daquele porte

 

cumpria a designação atribuída

os ladrões passavam bem longe

volta e meia caçava ratos

latia medroso para sapos

 

os latidos de Tigre

eram os ruídos altos na madrugada

nada perturbador

ele só desejava fazer a ronda

cuidar de quem mais amava

 

num sábado em que ela foi daminha

de um casamento do qual nem se lembra

nublado e meio esquisito

às voltas com os preparativos

ninguém viu Tigre dar a escapada

sumiu como um bom adolescente

sedento por curtir a liberdade

 

voltou todo sujinho

manco

prostrado

arrependido

o mais próximo de expressar

dor

uivou alto o bastante

não sentia força nas patas

chorava

lá se ia a dignidade

 

havia um matagal

por aquelas bandas

e um cão daquele porte

repleto de energia

almenjava explorar

com aquele focinho negro

cada extensão do terreno

 

para um cão viajante

era preciso conhecer sempre

o caminho de volta para casa

era um insaciável desbravador

mas tinha para onde ir

quando a expedição acabava

 

aranhas do tamanho de um punho

eram visitantes constantes

escondidas numa peça do roupeiro

visitando a parede do banheiro

 

cobras exploravam o matagal

um tropeço de Tigre e eis o bote

 

especulações

foram muitas

mas o tempo

só passava

cada vez

mais depressa

 

deitado no mesmo lugar

emitia uivos agoniados

o mais próximo de falar

 

um animalzinho enfermo

desejoso por viver mais

chorava pela dor na alma

a força do amor poderia curar

se não fosse tarde demais

 

os olhos outrora fulgentes

estavam opacos e distantes

o apetite desapareceu

abatido pela fraqueza

fazia-o chorar ainda mais

 

tinha o mundo inteiro

para com o focinho explorar

tinha a vida inteira

para no gramado deitar e rolar

tinha uma missão a cumprir

não podia abandonar seus humanos

 

lamentou o veterinário

nada mais podia ser feito

a difícil decisão foi tomada

no caminho de volta da escola

ela ainda esperou ver Tigre

e acostumar-se a um mundo

sem os pulos e lambidas dele

ainda era um golpe duro

 

os bilhetinhos em letra de forma

perderam-se com o passar dos anos

mas a essência que os envolveu

ainda haveria de despertá-la

para parágrafos maiores.

Marisol Luz (Mary)
Enviado por Marisol Luz (Mary) em 12/01/2022
Código do texto: T7427506
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.