Lágrima-argueira

Chora o homem no alto da mansarda a lágrima-argueira.

Em uma manhã dessas, algum tempo atrás,

estaria olhando por entre as vidraças e

dando vida ao emaranhado de existência

que havia em sua frente. Algum tempo atrás,

o pipoqueiro seria lembrado facilmente

com adjetivos alegres. As crianças, os bancos,

as praças, as ruas, o jornaleiro, a tabacaria.

Tudo, de maneira simples ou gloriosa,

teria a atenção de um homem-escritor.

Hoje, a fonte secou. O homem é homem e

vê somente outros homens e atividades simples,

vê apenas o que vê.

Sua linguagem não existe mais,

sua percepção que antes havia de ter provado

toda a vida por trás daquelas vidraças,

hoje não prova mais nada. Sua linguagem secou.

Pior, nunca nada tivera tão úmido de vazio e

a fonte nunca passara de ruína.

A mansarda antes clara de ideias e

tristezas e alegrias e a mais rica percepção,

agora é cinza e mal iluminada.

Luz.

Nunca houve lugar tão claro e amenizador.

Dor.

Quanta dor não passara por aqueles vãos estreitos,

pela vidraça, pelo candelabro nunca usado,

pela poeira e tapetes velhos.

Tudo sempre tivera tanta dor e isso era tão bom.

Hoje há somente os vãos, o candelabro, os tapetes...

Não há mais dor, há a poeira úmida de vazio,

de consistência tão cinza quanto

as últimas poeiras de uma ruína.

Hoje há somente um homem que chora,

chora a lágrima-argueira.

Sem pressa nem calma, nem saudade ou ambição,

mas sempre cultivando a lágrima-argueira,

em alguma pequenez de sua

medíocre vida de homem-escritor.

Sempre, na alta mansarda, cultivando a lágrima-argueira,

a fonte de toda linguagem e de toda percepção.

Vitor Romano
Enviado por Vitor Romano em 04/08/2020
Código do texto: T7025617
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