Lágrima-argueira
Chora o homem no alto da mansarda a lágrima-argueira.
Em uma manhã dessas, algum tempo atrás,
estaria olhando por entre as vidraças e
dando vida ao emaranhado de existência
que havia em sua frente. Algum tempo atrás,
o pipoqueiro seria lembrado facilmente
com adjetivos alegres. As crianças, os bancos,
as praças, as ruas, o jornaleiro, a tabacaria.
Tudo, de maneira simples ou gloriosa,
teria a atenção de um homem-escritor.
Hoje, a fonte secou. O homem é homem e
vê somente outros homens e atividades simples,
vê apenas o que vê.
Sua linguagem não existe mais,
sua percepção que antes havia de ter provado
toda a vida por trás daquelas vidraças,
hoje não prova mais nada. Sua linguagem secou.
Pior, nunca nada tivera tão úmido de vazio e
a fonte nunca passara de ruína.
A mansarda antes clara de ideias e
tristezas e alegrias e a mais rica percepção,
agora é cinza e mal iluminada.
Luz.
Nunca houve lugar tão claro e amenizador.
Dor.
Quanta dor não passara por aqueles vãos estreitos,
pela vidraça, pelo candelabro nunca usado,
pela poeira e tapetes velhos.
Tudo sempre tivera tanta dor e isso era tão bom.
Hoje há somente os vãos, o candelabro, os tapetes...
Não há mais dor, há a poeira úmida de vazio,
de consistência tão cinza quanto
as últimas poeiras de uma ruína.
Hoje há somente um homem que chora,
chora a lágrima-argueira.
Sem pressa nem calma, nem saudade ou ambição,
mas sempre cultivando a lágrima-argueira,
em alguma pequenez de sua
medíocre vida de homem-escritor.
Sempre, na alta mansarda, cultivando a lágrima-argueira,
a fonte de toda linguagem e de toda percepção.