POR ESCRITO
POR ESCRITO
Absorto pelo afã de fazer versos
Não cuido de passar a pão e água,
Ainda a revisar papéis dispersos.
Igual um alquimista em sua frágua,
Eu fujo à companhia dos demais
A purificar d’alma toda a mágoa.
Não por me haver melhor!… De mais a mais,
O Olvido nos alcança tudo e todos
E a morte quando vem nos faz iguais.
O certo é que busquei de tantos modos
Fazer sorrir-me a musa desvairada,
Que cai em esparrelas mais engodos…
De saída eu vi má minha jornada
Ao preferir as rimas ao dinheiro,
Ocupado em poetar por quase nada.
De facto, por retorno financeiro
Ninguém escreveria uma só linha!
Visto poeta ser poeta o tempo inteiro…
Penso não ser alguma coisa minha
Isso de procurar sonoridade
Que a Poesia da Música avizinha.
Em rimas eu poetei na mocidade
N’aquela indiferença franciscana
Em face da riqueza e da vaidade.
Demorei a entender a luz profana
E ver que Deus, se existe, bem s’esconde
Ao longo da sangrenta História humana.
Deveras, sem saber quando nem onde
Depois de às soledades inquirir
Apenas o silêncio me responde…
Às voltas co’as quimeras do porvir,
Deixo o transcendental como mistério,
Sem mais especular seu existir.
Ainda que entre os meus passe por sério
Muitos há que por falho me tomem
Sempre lhes tolerando o vitupério…
Minhas provocações bem os consomem:
— “Sob Deus, ao homem é mais condenável,
Matar um homem ou ir amar um homem?”
Vê-se porquê sou tão pouco vendável…
Entretanto, divirto-me a valer
Vendo escandalizar-se algum notável!
Concedo que é questão a esclarecer,
De maneira que a gente sempre viva
A matar-se por medo de morrer.
Mas se por Deus um homem mais se priva,
Corre o risco de nunca cogitar
Haver uma existência alternativa.
Aceita inopinado o seu lugar
Na altíssima pirâmide que eleva
Para outrem mais distante contemplar
E, ainda que profunda a sua treva,
Impõe-se o autoengano d’uma crença
A aceitar quanto d’ele a vida leva…
Eu, que sou miserável de nascença,
Não me iludo co’o mérito dos ricos,
Tampouco co’a memória de quem vença.
Porquanto a História escrita em impudicos
Floreios que sustém meias verdades
De grandes a reinar sobre nanicos.
E embora se conquistem liberdades,
Querem nos convencer que estamos vivos
Tão-só para fazer-lhes as vontades.
Os poetas são, portanto, inexpressivos
N’um mundo onde os homens são medidos
Por aquilo que vendem aos altivos.
Visto apenas quererem entretidos,
— Nunca alertas ou mesmo questionados —
Aqueles que às palavras dão ouvidos.
Não mais que multidões de embasbacados
Correndo atrás de artistas de artifício
Nas indústrias de mídia fabricados.
Nada de vagos poetas cujo ofício
Busca obter das palavras os clarões
Ao longo d’uma vida de ócio e vício.
De quebra, suscitar vãs reflexões
Co’a extrema liberdade dos vadios
Que se sabem entregues já aos leões.
Até porque, n’estes dias tão sombrios,
Poetar tem parecido inoportuno
Àqueles que detém os senhorios.
Se por males alheios não me puno,
Tampouco pela fúria do infeliz
Que s’entende de déspotas aluno.
Ele sim se apequena com o país,
N’uma resignação de vira-latas,
Que à sua própria gente mais maldiz.
Já farto de pessoas insensatas,
Eu cuido de meus versos ignorando
Do estúpido as estúpidas bravatas.
Posso até claudicar de vez em quando
E confundir o novo co’o bonito
Como quem admirado sai poetando…
Sem embargo, ajo assim porque acredito
E, sem sombra de dúvida, reafirmo:
Sim, eu faço a minha arte por escrito.
Betim — 05 02 2020