CESTAS DE VIME
AÇAFATES – Duodecaneto de William Lagos,
18 de janeiro de 2011.
AÇAFATES I (cestas de vime) (18 jan 11)
Em plena madrugada, meu sono se desmancha:
recordo de meus sonhos somente os filamentos;
foram três horas só, com interrompimentos,
não permaneço muito de meu divã na cancha...
Tão cedo quanto acordo, a vida se deslancha:
é escuro ainda, porém meus pensamentos
já correm tresloucados, em risos e lamentos;
o corpo levo até a cozinha, em que se arrancha...
Enquanto os sonhos desta noite, coloridos,
com sons, com cheiros, sabor e movimentos,
vão escorrendo aos poucos de minha mente...
Ficam os sonhos de amores nunca tidos,
bem mais presentes, em vagos sentimentos
que o mundo onírico de que me encontro ausente.
AÇAFATES II
Guardo meus sonhos em cem cestas de vime.
reforçadas com cerâmica de barro;
sonhos noturnos já seguem outro carro:
mil devaneios que o meu ego firme...
Tais cestos ao redor, com meu carinho amarro,
nessas mil redes neurais a que a razão me atine;
não quero um sonho ter que não me ensine
o que fazer com tais horas que agarro...
Fatos reais para mim parecem crus,
por tantas exigências de cunho corporal,
higiene, vestimentas, luz e fome...
Os devaneios, todavia, bem mais nus,
bailam fagueiros na mente imaterial
e vão-se embora... que sonhos não se come.
AÇAFATES III
Assim quimeras guardarei em cestas;
panos de prato entalarei em proteção;
ajustados com cuidado, impedirão
o apetite dos pássaros e das bestas.
E venderei meus monstros para festas;
alguns mais fortes se reproduzirão,
a se espalhar pelos cantos do salão,
na luz e brilho das antigas gestas.
A maioria, porém, pequenos frutos,
será servida em bandejas e alguidares
ou porcelana mais fina que açafates
e saboreados quais diamantes brutos:
deves provar lentamente tais sabores,
pois se os morderes, talvez meus sonhos mates.
AÇAFATES IV
Mas esses sonhos servidos em bandejas,
crepuscular produto de minha mente,
guardam em si um resplendor jacente,
brotam em ti a cada vez que os beijas
e te acompanham aonde quer que estejas,
raízes multicores em musgo permanente,
floração no interior, quimera urgente,
nessas ilusão de sons que talvez vejas,
pois alçados fecundarão teus pensamentos
engravidando mental útero interior,
da alma o ventre, o seio de calor,
da mente a cisma, a cor dos julgamentos,
da vida a seiva em adagas de razão,
frondoso arbusto de fértil comoção.
AÇAFATES V
Outros, quem sabe, nem serão provados,
mofados murchos no fundo das tigelas
manchas castanhas de mortas flores belas,
ovos de moscas ali depositados;
brotando as larvas, serão descartados
em qualquer lixo de mortais estrelas,
somente nojo terás assim de vê-las,
quimeras podres de sonhos despejados;
talvez os cães os comam, sem pudor,
serão surpresos ao conceber sonhos humanos;
talvez os corvos os venham debicar;
se forem gatos, miarão com mais furor,
se forem ratos, traçarão mimosos planos,
porém os corvos voltarão a revoar.
AÇAFATES VI
Mas que farão meus sonhos deste modo?
talvez os cães lhes deem maior valor,
voltados para a Lua, uivando amor,
cada ganido um canto de denodo;
pequenos sonhos de cães, sarjeta ao lado,
sonhos nutridos dos meus, osso e sabor;
serão menores, quiçá, mas seu lavor
irão mostrar em seu ladrar a rodo;
no fim de tudo, qual será a diferença?
Caso sejam por humanos consumidos,
meus sonhos serão todos digeridos
e utilizados consoante com sua crença:
quem sabe engastarão, camafeu belo,
quem sabe a pontilhar cristal de gelo.
AÇAFATES VII
Mas se os sonhos devorados são por ratos,
os habitantes de túneis desprezados,
dos humanos rivais, sempre caçados,
perseguidos por cães, prazer dos gatos,
até é possível que os rodentes timoratos
prazer encontrem em meus sonhos descartados,
películas de alma, grifos desvairados,
talvez concebam para si estranhos fatos,
em ilusões a correr-lhes pelas mentes,
sonhos de ratos, querendo ser morcegos
(não são muito diferentes dos humanos!)
pois tanta gente nutre em si sonhos ardentes,
querem vampiros ser, pendores cegos
julgando eterna a vida em tais afanos!
AÇAFATES VIII
Mas e se forem os corvos que devoram
essas polpas de sonho emurchecidas?
São bem onívoros em suas investidas,
tudo lhes serve de alimento e exploram,
desde o interior dos ossos que ignoram,
antigos donos de almas já perdidas,
até os restos de memórias esquecidas,
já não lembradas sequer pelos que as choram...
São aves tímidas e logo o voo alçam,
os seus remígios abertos para o vento, (*)
ao crocitar seu peculiar lamento;
(as longas penas das pontas das asas que orientem o voo.
mas em suas asas sobras de sonhos valsam
e nas correntes de ar assim se espalham,
voltando à terra em gotas quando orvalham.
AÇAFATES IX
Quem sabe a chuva os lavará em breve
dessas nuvens de poeira em que pousaram?
Impuros e quebrados, ali se alçaram,
no bico dos abutres de ilusão leve;
talvez miragem a que algum mirar se atreve
e os que um resto de vida conservaram
podem pingar nos olhos que os miraram
ou penetrar-lhes nas narinas feito neve
ou nos ouvidos, talvez, ali escorrendo,
bem lentamente, até o labirinto,
bigorna, estribo e martelo a percutir
e até as cocleias no final acabam lendo (*)
essas mensagens em que hoje eu minto
e quem sabe até a verdades conduzir...
(*) Centros nervosos da audição.
AÇAFATES X
As casas encherei com cestas de minhas veias,
trançadas firmemente, mais que vime ou que cipó;
algumas ganham tampas, mas outras terão só
certa armação de sangue coagulado em teias;
samburás eu tecerei para as visões mais feias;
terei os meus jacás para ilusões em pó,
farei um matulão para guardar meu dó
e em açafates as que destino a deias...
Alguns me servirão para guardar rancores,
suas tampas firmes, mas boa a aeração:
presos demais, em ódio se transformam;
bem mais fechados, recipientes de minhas dores,
trançados com as artérias levando ao coração,
pendurados bem alto, enfeites tristes que me adornam.
AÇAFATES XI
Será que alguém me irá tecer tais açafates?
Não preciso de ti, se esperas isso ouvir;
eu tenho quem mos teça e saiba até sorrir
ao arrancar de mim as veias nos embates...
Mas novas veias crescem e assim ficam empates,
capilares de sonho, safenas a brunir;
a ausência dessas veias não tolhe o meu agir,
por mais que esse trançar em tua lembrança dates.
Reuni minhas saudades em linhas de montagem:
são hábeis artesãs, cada qual no seu mister,
depressa meus anseios retorcem em suas mãos;
mas são paixões que trançam as tampas com coragem,
com redes de suspiros roubados a mulher,
no refazer das fibras que mordem corações.
AÇAFATES XII
Adorno assim, contente, as paredes de minha casa,
cestas de vime ou palhas, com cestos de papiro;
fazer viagem neles como destino eu miro,
as palmas de minhas mãos serão remo que as embasa;
contudo, a direção, aos poucos, se defasa:
remando com a direita, eu para a esquerda giro;
se empuxo com a esquerda, rumo direito eu firo,
mas não uso as duas mãos, porque tal barco vasa,
o fundo a se afogar no sangue de meus sonhos,
calafeto esses cestos com mágicas quimeras,
dos lados brota a linfa que traz a realidade;
mas assim mesmo emprego os meus ideais bisonhos,
usando os meus neurônios quais amassadas ceras
para manter meus cestos na rota da vaidade.
William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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