VAI SER POETISA
me fiz poetisa
assim, num dia qualquer
que o acaso chegou-me perto
e me soprou num grunhido
ininteligível
o som que
sei eu lá se decifrei
ou se, como é de praxe
foi apenas fruto escorregadio
da minha mente
dizia o seguinte
- pega essa tua trouxa,
ainda pequena,
essa meia dúzia de amarguras
e um outro par de doçuras
que terás de inventar
joga tudo aí
abre a janela
da casa
abre a janela
da mente
deixa tudo entrar
para cuspir
depois
o que quiser
(põe corpo dentro
alma fora(
e segue
vai ser poetisa
descobre o teu lugar
mas cuida
que pode ser alegre
e pode sangrar
vais inocentar acusando
e acusar inocentando
um antigo
um próximo
ato
um ser
vai, coloca tua boca no mundo
vomita teus anseios
transborda tua seiva
vai, vai
vai logo e de uma vez,
questionar
somar, subtrair
desenhar
intervir
dançar a vida
com a ponta dos teus dedos
com o carvão, a caneta, o galho
um bugalho, uma semente
um ente na mente,
pele, corpo visível -
a verdade é
que vejo agora
e então
anos depois
tenho feito é nada de realmente aproveitável
concebi a escrita com outro nome: U.T.I.
assim sendo e desde então
cria-me sentido para o que não tem
escrita, respirador extra-corpóreo
joga-me na cara "uma realidade inventada"
à um niilismo absoluto
que quero eu mais?
já é hora
já passou da hora
borboleta quer sair
vai ser poetisa
descobre o lugar do outro
dentro de ti que está dentro dum outro
que está dentro dum mundo
que está dentro de ti