Discurso às Palavras
Quisera eu convocar as palavras
Pegá-las de surpresa em assembleia extraordinária
E dizer-lhes que nossa parceria acabou
Quisera eu olhar cada letrinha torta nos olhos
Intimidá-las com o olhar decidido que jamais cultivei
E confidenciar-lhes sem delongas que o tempo de seguirmos caminho distinto chegou
Quisera eu confessar
Que pretendo viver não mais de versos, mas de gestos
Viver de pés descalços massageados pela areia
E de raios de sol aquecendo minha pele que já foi tão fria
Quisera eu empenhar
Meu coração tão pouco lúcido em não mais expectativas em estrofes transformar
Viver do que está presente
E não mais importar-me com nada que esteja mais distante do que meu braço estendido pode alcançar
Quisera eu viver poesia
E não mais morrer pouco a pouco em versos irrealizáveis
Quisera eu abrir a porta
E caminhar na vida real como meu próprio eu-lírico
E não mais comemorar façanhas de personagens presos em aventuras bidimensionais
Quisera eu merecer os aplausos
Que as palavras gentilmente fingem que são para mim
Ao invés de aproveitar-me de manhãs ébrias e noites insones para fingir que sou arte
Quisera eu ser mais que minhas palavras
Mas mesmo que eu as afaste com o mais inflamado dos discursos
Elas voltarão a dormir ao meu lado
E os poemas continuarão a nascer mesmo que eu lute