TRANSMOGRIFICAÇÃO (I - IV)

TRANSMOGRIFICAÇÃO I

Com freqüência, eu pressinto que passei

de um mundo para outro: é tudo igual,

mas diferente do mundo natural

e inabstrato em que antes habitei:

é como se este mundo em que morei,

durante o sono, de forma surreal,

tivesse sido transferido, qual

quando chave ou botão eu apertei,

na onírica região dos falsos zelos;

ou se cruzasse, andando pelas ruas,

qualquer portal de vezo permanente,

em que se transmutassem os desvelos

de tantas coisas que contemplo... nuas:

que é tudo igual -- e tudo diferente!

TRANSMOGRIFICAÇÃO II

Vejo então que em meu corpo algo mudou,

sinto que emagreci ou que engordei

da noite para o dia; ou que acordei

impante de energia -- ou se esgotou

todo o vigor que tinha ao anoitecer;

às vezes, a impressão é bem mais vaga,

eu sou eu mesmo, é o mundo que se alaga

em manto cinza de novo vir-a-ser,

que me enche de espanto e me fascina:

como se tudo se encaixasse de repente

e antigos sonhos viessem me abraçar...

noutro pendor o pêndulo se inclina

e tudo se desmancha indiferente,

em novo dia que tenho de enfrentar...

TRANSMOGRIFICAÇÃO III

Ou ainda no espelho enxergo o rosto

em que pequena ruga se apresenta,

ou cabelos branquearam, numa lenta

degradação contrária ao velho gosto;

ou opostamente, vejo o lisor reposto,

numa surpresa que a vaidade de contenta;

cabelos crescem na tonsura benta,

retorna à barba a antiga cor de mosto;

ou quem sabe, coloração de estranho,

mostrando à pele nuance de esverdeado

ou contra a luz, um tom amarelado

ou ainda alusão a ferro ou estanho

nesses ossos aparentes do zigoma,

em que algo diminui ou então se soma...

TRANSMOGRIFICAÇÃO IV

Será possível que não passe de impressão

qualquer percepção de tal mudança?

Que já esqueci da solitária trança,

hoje nos cantos do bigode outra feição?

Houve de fato qualquer transformação

ou é somente a mente que se cansa

do rosto antigo e assim assume a dança,

fisionomia a indicar noutra visão?

Como saber, quando a fotografia

sempre é diversa do que revela o espelho,

por efeito de luz ou de emoção?

Ou que a surpresa que em meus olhos via

é contração dolorosa ante algum relho,

lento azorrague da transmogrificação?