A saga de Inácio de Loyola em Jerusalém

Inácio de Loyola, ao deixar registradas, não sem alguma resistência, nas suas conversas com o Padre Luís Gonçalves da Câmara, a sua peregrinação para Jerusalém, sem dúvida, uma verdadeira saga, me faz refletir em alguns pontos.

 

Toda peregrinação permite ser vivida através de dois olhares: o primeiro é o exterior. Tanta gente peregrina pela vida, inclusive até mesmo por Jerusalém somente com esse olhar de fora. Por isto não aproveita nada, volta do mesmo jeito que foi. Isto porque só faz a experiência de viver o lado exterior do turismo, conhecer lugares, fazer compras, ver a cultura, curtir a paisagem. Tal estilo de peregrinação só gera lembranças que pouco a pouco irão se apagando da memória. Não provoca mudanças e muito menos crescimento.

 

O segundo olhar, muito mais significativo, é o que faz a diferença. Trata-se da mirada interior. Nele podemos observar a transformação que não somente o lugar onde acontece a peregrinação, bem como também o caminho para se chegar lá vai realizando no peregrino. Com certeza, que quem vive assim a peregrinação não retorna a mesma pessoa que partiu. Ela se faz outra, um novo ser humano, muito maior, mais amoroso e mais bonito. Foi exatamente isto, a partir da sua peregrinação interior, que o caminho e a estada em Jerusalém propiciaram a Inácio.

 

Passados quinhentos anos da sua passagem por aquelas terras, se faz tempo de celebrar e para isto, gostaria de lhes trazer cinco aspectos que considero, dentre tantos outros, como os mais relevantes, eis que me ajudam a experimentar com o santo, em 2024, tanto tempo depois, a sua peregrinação, trazendo-a também para a atualidade e concretude da minha vida diária. Não através de uma nova caminhada física por aqueles mundos, mas aquele segundo olhar o espiritual, a caminhada interna, o seu percurso do coração, através do qual ele ia adquirindo o “conhecimento interno” daquele a quem tanto amava e começara a seguir.

 

1 Fidelidade ao propósito

Todos com os quais falava, quando ficavam sabendo que ele não tinha dinheiro para ir à Jerusalém, procuravam dissuadi-lo da viagem. Apresentavam muitas razões para mostrar que era impossível conseguir a passagem sem dinheiro. Mas ele tinha esta grande certeza em sua alma: não podia duvidar que encontraria um meio de ir a Jerusalém. (Relato do Peregrino 40)

Como me é gratificante observar o tanto que Santo Inácio era totalmente fiel ao seu propósito. Nada o tirava desse caminho. Ele enfrentava tudo, nada considerava como empecilho, fosse doença, fraqueza, o fantasma da peste. E mesmo não tendo dinheiro para a empreitada, lá seguia ele, manquitolando pelas estradas, em seu objetivo de pisar a terra na qual o nosso Senhor caminhou quando vivia entre nós. Na sua fidelidade eu encontro a própria fidelidade de Jesus ao Reino, fiel até o fim, como nos diz Paulo na Carta aos Filipenses.

Os tempos que vivemos hoje muito mais do que de propósito, são de descompromisso com o sacrifício e dificuldade. Nessa nossa pós-modernidade, nada que não seja fácil e prazeroso deve ser buscado e, menos ainda experimentado. Inácio me ensina que mesmo em meio a tanto despropósito, o propósito da minha vida, meu Princípio e Fundamento é bem distinto. Sou criado para louvar, reverenciar e servir a Deus nosso Senhor (Conforme EE 23) e ser fiel a esse propósito me irá trazer dificuldades pelo caminho da vida.

 

2 Confiança na Providência Divina

O santo não duvidava de que Deus cuidaria dele. Tinha algum dinheiro, os tais oito ou nove ducados, moedas que eram de bom valor, tanto que lhe foram ofertados para pagamento da passagem de Veneza a Jerusalém, mas ele, à medida em que os sentia tilintar na bolsa, começou a experimentar que preservá-los denotava falta de confiança no Pai tê-los aceitado e assim os gastou, dando-os “prodigamente” no dizer do Padre Câmara, aos que encontrava e que eram, principalmente, pobres.

Olho para a vida em volta, volto os olhos para a minha vida e constato o quanto sou apegado aos bens terrenos. Sim, tenho família, tenho obrigações, preciso cuidar de tantas coisas, mas mesmo sabedor disso tudo observo o quanto ponho tão pouca a minha confiança no Senhor. O quanto a posto em minhas forças, capacidades e competências, os tais talentos. E isto, mesmo sendo sabedor do quão frágil é a vida e de que tudo que eu juntar aqui, de nada me terá valia na vida eterna. Ou, dizendo de uma outra maneira, como refletiam os mais antigos, “caixão não tem gaveta”. E essa confiança aumenta mais ainda, eis que o santo a demonstrava vivendo uma vida muito mais frágil do que essa com muitos mais cuidados, medicina, meios de transportes, tecnologia de hoje em dia.

 

3 Coragem

Ao ver Inácio se colocar a caminho, se tem algo que me provoca grande admiração é a sua coragem. Sem recursos, sem haver meios de transporte pelo menos razoáveis, com a saúde fragilizada, tendo o seu destino ocupado pelos muçulmanos, mesmo assim, ele não fica parado. Inácio partiu. Nada o impediria de seguir o seu propósito de vida daquele tempo da existência.

Ao observarmos mais de perto a palavra coragem descobrimos que vem do latim e que originariamente tinha o sentido de “bravura que vem de um coração forte”. Não por acaso, “cor” em latim tem o significado de coração. No seu corpo frágil, com as sequelas não só da bala de canhão de Pamplona que o deixou manco, mas de outras adversidades, inclusive do estômago, nosso santo mantinha saudável e forte o coração de um bravo.

Na cena relatada no número 38 do Relato do Peregrino, quando ele defendia uma pobre mulher e sua filha – vestida de homem, como maneira de evitar que fosse violentada -, o Padre Câmara nos conta que o santo falava com “tanta energia que todas as pessoas ficavam amedrontadas”. No jeito que ele ensinou de contemplar a cena, busco viajar até aquele lugar e hora e então encontro naquela noite um homem pequeno, manco e vestido como um mendigo, não sendo escorraçado mas, ao contrário, sendo respeitado. Claro está que não por sua força humana, tão pequena, mas pela autoridade que lhe vinha do seu Senhor e que naquela hora exercia. Aqui, contemplando essa cena, não deixo de recordar em São Mateus (Mt 7,29) a cena de Jesus ensinando na sinagoga e o povo a constatar que “Ele falava como quem tem autoridade”.

Como faz falta no mundo de hoje a virtude da coragem. Vivemos, principalmente nas grandes cidades, amedrontados, tantas vezes presos em nossos prédios, muros dos nossos condomínios, grades das nossas casas. Olhando essa realidade da vida na qual me vejo inserido, constato o quanto é necessária em mim essa bravura. É preciso, quero reparar, que nas minhas orações eu peça a graça ao Senhor de me conceder dentro do peito um pedacinho que seja somente, do coração de bravura do nosso santo de Loyola.

 

4 – Cuidado com os pobres

De Jesus dizia o grande teólogo protestante, assassinado pelos nazistas, Dietrich Bonhoeffer, ser o “homem para os outros”. Ao caminhar com Inácio de Loyola seguindo para Jerusalém e lá no interior da Terra Santa, sinto a liberdade de poder dizer também, a respeito dele, o que Bonhoeffer dizia ao falar de Jesus: Inácio de Loyola, um homem para os outros.

Sempre com o olhar posto em volta, sempre atento aos pobres e excluídos. Inácio, empobrecido por amor a Deus e, por isto, também excluído em meio à sociedade em que vivia, como podemos observá-lo a dormir nos portais da Praça de São Marcos em Veneza. Ao se colocar assim, ele se punha entre os preferidos, entre aqueles que, não por serem excluídos e empobrecidos, mas porque estavam em sofrimento, eram os mais amados pelo Pai que é todo Amor.

A pobreza e exclusão da forma como Inácio de Loyola experimentou em sua peregrinação e também por toda vida, continua hoje. Somos testemunhas de que as maneiras de excluir, diminuir e empobrecer as pessoas, ao invés de haver diminuído passado tanto tempo, muito aumentou. O mundo cada dia mais fechado, o migrante cada vez deixado mais de lado e mesmo impossibilitado de se livrar da fome, seca, guerra, injustiça, inundações porque as portas do mundo estão fechadas para ele. As novas formas de racismo, o bullying, preconceitos de todo tipo, a questão dos gays... Sem dúvida que esse olhar de amor de Inácio para os que sofrem, tem muito a nos dizer hoje.

 

5 Discernimento da vontade de Deus

Todos nós, filhos espirituais de Santo Inácio de Loyola, deveríamos agradecer todos os dias pela decisão do guardião e provincial franciscanos, que, absolutamente contra a sua vontade, impediram o santo de permanecer morando em Jerusalém. Houvessem permitido a permanência dele e a sua vida teria acontecido, muito provavelmente, escondida naquela região tão sofrida onde Jesus nasceu e viveu entre nós. Faço um novo exercício de contemplação e vejo-o numa daquelas Igrejas a confessar e orientar espiritualmente os bandos de peregrinos, principalmente aqueles de língua espanhola, que por lá peregrinavam em seu tempo.

Inácio, a partir da negação dos frades franciscanos, que posso imaginar o quanto o fizeram sofrer, iniciou seu processo de discernimento e nele sentiu a sua fé crescer e se tornar adulta.

Àquela fé concreta, creio mesmo que posso dizer um tanto quanto infantilizada, que exigia verificar novamente qual era o pé - o esquerdo, ou o direito - que estava impresso na pedra da Ascensão, o santo vai trazendo e experimentando o simbólico. A partir daí vai constatar que a terra de Jesus não estava posta geograficamente somente em Jerusalém, mas era o mundo todo.

E é assim, amadurecido, eis que toda peregrinação levada a sério, feita no modo interior, nos transforma, que Inácio retorna de Jerusalém. Sem dúvidas que volta outro, muito maior, sabedor agora que o conhecimento de Jesus que precisava buscar ia muito mais além do que os lugares pelos quais passou o Filho de Deus quando viveu no mundo.

 

 

Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 09/06/2024
Código do texto: T8082258
Classificação de conteúdo: seguro