Adalberto Lima - Trecho do livro
Estrela que o vento soprou
A noite desce sem luar e sem estrelas; tinge o céu com o negrume de seu manto, e tece o cenário dos heróis do medo. Temendo, o próprio medo treme e cambaleia. Vultos noturnos passeiam na praia de Copacabana.
A boneca Mary Emily, cheia de pano e de medo, fica imaginando como será o homem que cada menino constrói dentro de si, a partir da interação com brinquedos monstruosos. Ela já não gosta mais dos filmes de terror, e vez por outra, acorda de sobressalto, por causa de pesadelos habitados por criaturas diabólicas, que outrora, via na TV.
E pela primeira vez, a boneca desejou ser uma rainha, ter muitos súditos e um grande exército, para combater os monstros que lhe perturbam o sono. Abriu lentamente a tampa da caixa em que dormia, e descobriu que o abajur estava aceso.
A Emily viu que Ravenala lia o livro protegido por uma capa de couro, que tinha um zíper e sempre estivera fechado sobre a mesinha de cabeceira. Agora aberto, saia dele uma luz.
Não quis perguntar o que a amiga sentia, quando os raios incidentes sobre seu peito, projetavam a imagem de um coração transparente, a pulsar com frequência ritmada. Com cuidado, a dona da boneca fechou o livro e o colocou sobre o pequeno móvel ao lado da cama.
– Durma Emily! Amanhã teremos um dia muito atarefado.
– Não consigo dormir! Tenho medo de monstros. Queria ser como Robert que não tem medo de nada.
– Os homens escondem seus medos, quando estão diante das mulheres. Faça o teste: quando Robert disser que não tem medo, olhe os lábios dele. Se tremerem, ele está mentindo.
– Não são mais os olhos a janela do coração? – quis saber a boneca.
– O rosto é o lado externo do coração; os olhos, ambos os lados; mas são os lábios que escondem ou revelam a verdade.
Preferiu não passar para Emily todo o capítulo do livro que lera há pouco. Disse apenas: “O coração do homem modifica seu rosto.”
Donde a boneca concluiu.
— Então, não têm bom coração os brinquedos com faces diabólicas.
— Estás certa, Emily. Vamos sugerir aos fabricantes que produzam bonecos à imagem e semelhança de santos. Deste modo, as crianças sonharão com anjos, e não com demônios fazendo diabruras em suas mentes.
Figuras de heróis com feições diabólicas vistas na televisão, há muito tempo, ainda perturbavam a mente, e metiam medo na boneca Mary Emily.
— Não consigo dormir! Cante uma canção de ninar!
Ravenala cantou:
– “O cravo brigou com a rosa, debaixo de uma sacada, o gravo saiu ferido, e a rosa despedaçada...”
– Esta canção é violenta! Não é de ninar.
– Então conte carneirinhos...
Emily iniciou a contagem, mas o sono não veio.
– Já contei 99 e ainda não dormi.
– É porque uma ovelha desgarrou-se! Não dormirás, enquanto não encontrares a ovelha perdida.
– Vou tentar mais uma vez.
E recomeçou a contagem:
“Um carneirinho...dois carneirinhos...três carneirinhos...”
Terminada a contagem, o pastor fechou a porteira do aprisco.
Não faltava nem uma ovelha.
NA
A caminhada até o prelo, durou quinze anos.
Finalmente, em 2022, o artesão das letras
Bate, devagarinho, à porta do editor.