Óculos

Fico a pensar sobre ser um míope antes de a humanidade ter desenvolvido lentes...

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Cegueira ruim não é a do cego, mas a daquele que não quer ver – já se diz isso por aí.

Mas pior ainda é a daqueles que pensam estar enxergando o mundo sem lentes, pois todo ser humano usa óculos, aos grupos, cada grupo com sua lente. Quem não sabe que usa lentes está fadado à arrogância, ou não? Há alguma lente universal? Bom... Isso é outra conversa.

Os “ismos” são as lentes que se desenvolveram na história: marxismo, liberalismo, anarquismo, cristianismo, ateísmo, para citar os mais “perigosos”.

O problema dos nossos dias não é o fato de termos, como espécie, de usar óculos, todos. O problema é não ter empatia com as lentes alheias.

Tenho, no meu íntimo existencial, uma lente-mão-de-todas: o cristianismo. Dirão os marxistas: - Tua lente te engana, drogado! Dirão os liberais: - Podemos usar teus óculos em benefício de nosso bolso. Dirão os anarquistas: - Não queremos lente alguma. Dirão os ateus: - Não existe o que vês. Dirão todos: - És arrogante ao pensares ver com uma lente “mãe-de-todas”!

Mas tento pôr, de quando em vez, outras lentes. Às vezes enxergo coisas que, tenho que dar o braço a torcer, não via antes; Noutras, a lembrança das imagens da lente-mãe-de-todas me permitem comparar e apenas ter compaixão, ou raiva humana.

Muito já se matou em nome do que se viu.

Muito se mata em nome do que se vê.

Como fizerem os que enxergaram com a lente da Inquisição, lente-mãe-de-todas, mas suja, mostrando um mundo turvo.

A lente socialista permitiu ver a balança que pende mais para um lado do que para outro em nossas castas, mas tinham e têm permitido enxergar o peso que verdadeiramente contrabalança?

A lente liberal permitiu ver o avanço, o progresso, pois não queremos mais armazenar carne em banha, mas tinha e tem permitido ver o limite?

A lente anárquica mostrou que, para dar um jeito no mundo, precisamos tentar a autor-regulação.

Os contemporâneos óculos fazem perceber os direitos humanos como direitos máximos e o prazer e a felicidade como as conquistas máximas.

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Mas não adianta eu ficar analisando vestido com minha-lente-mãe-de-todas, não me livrarei da pecha de arrogante. Acabo, porém, pensando que, nessa pós-moderna época de lentes avançadas, prefiro continuar com minha antiquada lente, que não me cura a miopia, não me mostra tudo o que outros veem, mas, e eis a chave, não me faz pensar que não estou usando óculos e me faz amar os que usam óculos diferentes dos meus...

10.08.2017