Jesus Mudou a Lei
"Porque, mudando-se o sacerdócio, necessariamente se faz também mudança da lei." (Hebreus 7.12)
Durante a argumentação do autor de Hebreus, no capítulo 6, ele convoca seus leitores a avançar na doutrina de Cristo, deixando as coisas básicas (o ensino sobre o batismo, ressurreição dos mortos e do juízo eterno, por exemplo) e mergulhando nas verdades mais profundas da fé. Sua preocupação é que seus leitores não fossem negligentes na caminhada cristã, mas imitadores daqueles que, pela fé, herdaram as promessas de Deus. Devemos confiar em Deus, pois temos uma verdadeira âncora que garante a veracidade da promessa divina, Cristo Jesus, que diante do trono de Deus nos céus nos é eterno sumo sacerdote, segundo a ordem de Melquisedeque.
Ele inicia o capítulo 7 contando um pouco sobre este Melquisedeque. Ele argumenta que este homem era superior a Abraão e, consequentemente, superior a Levi; portanto, o sacerdócio segundo a ordem de Melquisedeque é superior ao sacerdócio segundo a ordem de Levi, sob o qual os hebreus no Antigo Testamento estavam. Nós, que seguimos Jesus, também estamos sob esse mesmo sacerdócio. Ora, se a lei estava integrada ao sacerdócio levítico, e não estamos mais debaixo do sacerdócio levítico, nós não estamos mais debaixo dessa lei. Nesse texto explicarei o que significa essa mudança da lei, e algumas implicações práticas dessa mudança.
DEMONSTRAÇÃO
1. Melquisedeque era superior a Abraão. Primeiramente, precisamos relembrar quem é Melquisedeque. Segundo Gênesis 14, houve uma guerra entre duas coalizões de reis. Os vencedores tomaram todos os bens de Sodoma e de Gomorra, e também as pessoas. Nessa, Ló, sobrinho de Abraão, antepassado do povo de Israel, foi levado como escravo. Abraão reuniu um grupo de homens armados e lutou para resgatar seu sobrinho. Após sua vitória, um rei chamado Melquisedeque, de um lugar chamado Salém, sacerdote do Deus Altíssimo, encontrou-se com Abraão e o abençoou. E Abraão deu-lhe o dízimo de todos os despojos que adquiriu na batalha.
Esse Melquisedeque é uma figura misteriosa, a Bíblia fala muito pouco sobre ele. Não é mencionado seu pai, mãe ou genealogia. Mas no ato de Abraão de dar-lhe dízimos, o chamado "pai da fé" reconheceu sua superioridade e a legitimidade de seu sacerdócio. Ele era um servo do Deus verdadeiro, que chamou Abraão. Isso é surpreendente, porque lendo o relato bíblico, até esse momento parece que Abraão e sua família eram os únicos que, no meio de tanta corrupção e idolatria, serviam ao Deus Altíssimo. Daí aparece esse Melquisedeque, que não só era um servo de Deus, mas um sacerdote Dele, um representante do Eterno na Terra. Ainda assim, tal figura tão importante - eu diria que, depois do próprio Deus, o personagem mais importante de Gênesis - é completamente misteriosa. Segundo o argumento de Hebreus, isso foi feito dessa forma para que ele simbolizasse Jesus Cristo, que também não teve uma origem e não terá um fim.
Melquisedeque abençoou Abraão: "Mas aquele, cuja genealogia não é contada entre eles, tomou dízimos de Abraão, e abençoou o que tinha as promessas. Ora, sem contradição alguma, o menor é abençoado pelo maior" (Hebreus 7.6-7). Essa benção é outra evidência da superioridade de sua superioridade em relação a ele.
Comentando o versículo 6, João Calvino nota que o autor de Hebreus faz questão de enfatizar a dignidade de Abraão, "o que tinha as promessas", ou seja, o primeiro do povo santo com quem Deus fez o pacto da vida eterna, para destacar a dignidade do homem que o abençoou. E a benção de Melquisedeque não foi como a de um irmão abençoando outro, mas como um pai abençoando seu filho, ou um sacerdote abençoando um homem comum; ou seja, era uma benção a partir de uma posição de autoridade.
2. O sacerdócio de Melquisedeque é superior ao sacerdócio Levítico. É importante mencionar a mentalidade hebraica de que um filho está em seu pai antes de ser colocado na mãe para ser concebido. Então Levi, de quem descendiam os sacerdotes na Lei de Moisés, e consequentemente todos esses sacerdotes, estavam em Jacó antes de nascerem. Jacó, e seus descendentes, estavam em Isaque. E Isaque, com seus descendentes, estavam em Abraão quando este deu dízimos para Melquisedeque. "E, por assim dizer, por meio de Abraão, até Levi, que recebe dízimos, pagou dízimos. Porque ainda ele estava nos lombos de seu pai quando Melquisedeque lhe saiu ao encontro." (Hebreus 7.9-10).
O versículo 8 destaca que o nosso Sumo Sacerdote não é como os levitas, homens mortais, mas um sacerdote que permanece para sempre. Ele toma o silêncio a respeito da morte de Melquisedeque, segundo o comentário de Calvino, como um símbolo da vida eterna de Cristo. Isso porque o sacerdócio de Melquisedeque, do qual Jesus é o último representante, deve ser perpétuo, enquanto o dos levitas era temporário. Essa mortalidade dos sacerdotes levitas, comparada com a eternidade do sacerdócio de Melquisedeque, indica que este é perpétuo, enquanto aquele era apenas para uma época.
3. Jesus é sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque. Salmos 110.4 diz sobre Ele: "Jurou o Senhor, e não se arrependerá: tu és um sacerdote eterno, segundo a ordem de Melquisedeque". Isso significa que Jesus estabeleceu um sacerdócio superior ao de Levi. E esse era o plano de Deus desde o início, porque "se a perfeição fosse pelo sacerdócio levítico (...), que necessidade havia logo de que outro sacerdote se levantasse, segundo a ordem de Melquisedeque, e não fosse chamado segundo a ordem de Arão [ou seja, de Levi]?" (Hb 7.11). Mais do que isso, era NECESSÁRIO que Jesus, para ser nosso sumo sacerdote, fosse de outro sacerdócio que não o levítico/araônico, porque Ele não era descendente de Levi, mas de Judá, conforme os versículos 13 e 14. Em Israel, os reis eram da tribo de Judá, e os sacerdotes da tribo de Levi; assim, era impossível que alguém fosse rei e sacerdote, a não ser que estabelecesse outro sacerdócio.
4. Jesus mudou a lei, conforme nosso versículo inicial afirma claramente. A questão principal que se levanta aqui é: de que "lei" Hebreus está falando? E a resposta o próprio texto nos fornece: se a lei que muda, muda por causa da mudança do sacerdócio, assim, a lei que foi abolida é aquela parte do ministério mosaico subordinada ao sacerdócio levítico, sendo abolida com o fim dele, uma vez que o véu foi retirado e as sombras deram lugar à luz de Cristo. Ou seja, o texto está falando sobre a abolição do que, no Cristianismo, chamamos de "leis cerimoniais".
Segundo Hebreus 7.16, o sacerdócio de Cristo não foi estabelecido "segundo a lei do mandamento carnal, mas segundo a virtude da vida incorruptível". As leis cerimoniais são chamadas de carnais. Isso não era necessariamente ruim, uma vez que elas eram adaptadas à ignorância e fraqueza do povo de Deus no Antigo Testamento. Eles eram meninos, e precisavam ser cuidados com leite, com uma alimentação espiritual adequada a eles. Entretanto, uma vez que com a vinda de Cristo a Igreja alcançou maior maturidade, ela não pode mais subsistir apenas com leite. Mas os leitores de Hebreus queriam voltar àquelas práticas antigas, e é esse o motivo de toda a sua argumentação: "Porque, devendo já ser mestres pelo tempo, ainda necessitais de que se vos torne a ensinar quais sejam os primeiros rudimentos das palavras de Deus; e vos haveis feito tais que necessitais de leite, e não de sólido mantimento. Porque qualquer que ainda se alimenta de leite não está experimentado na palavra da justiça, porque é menino. Mas o mantimento sólido é para os perfeitos, os quais, em razão do costume, têm os sentidos exercitados para discernir tanto o bem como o mal." (Hb 4.12-14).
APLICAÇÃO
1. Todas as Escrituras apontam, de alguma forma, para Jesus. Não fosse por essa argumentação de Hebreus, a maioria de nós jamais veria as menções a Melquisedeque como um tipo tão profundo e tão belo de Cristo. Mas Hebreus não acrescentou muita informação nova sobre o assunto: ele simplesmente organizou, em seu argumento, aquilo que já poderíamos saber a partir do Antigo Testamento.
Isso significa que devemos procurar Cristo em cada capítulo, em cada situação, em cada história do Antigo Testamento. É desse modo que a Bíblia alimenta nossa esperança e nos encoraja, revelando tudo o que Deus é para nós em Jesus Cristo, revelando para nós a promessa da qual também somos herdeiros (Hb 6.17). Ela nos convoca à paciência, dando-nos muitos exemplos de perseverança na fé para que não sejamos negligentes. Ela nos dá muitas parábolas e exemplos que ilustram verdades espirituais profundas. Ela é o instrumento de Deus para nos iluminar, nos fazer provar do dom celestial, nos conceder o Espírito Santo pela fé e as virtudes do século futuro. Ela nos conduz ao arrependimento.
Por isso, precisamos nos esforçar para não aprender a Palavra de Deus de maneira superficial e apenas suas doutrinas mais básicas, mas nos aprofundar mais e mais em seus tesouros, senão nunca chegaremos à perfeição que Deus espera de nós (Hb 6.1-2), nem saberemos discernir com precisão o bem e o mal (Hb 5.14). Não adianta, não tem outro comum, se você não meditar na Bíblia com profundidade, se você não se dedicar a estudar teologia à sério, você nunca vai amadurecer na fé.
2. O dízimo é uma forma de reconhecer um sacerdócio. Quando Abraão deu dízimos a Melquisedeque, ele estava se submetendo ao seu sacerdócio. Como não estamos mais sob o sacerdócio levítico, não estamos mais obrigados a obedecer o mandamento dos dízimos da Lei, pois tais estavam intimamente ligados aos levitas. Isso não significa que o dízimo foi abolido, porque Melquisedeque também recebeu dízimo, mas ele era bem diferente do dízimo dos levitas, diferente de Malaquias 3, com outras motivações. Por isso, no Novo Testamento, a prática da Igreja não era dar 10% mensais ou anuais do seu ganho, mas ofertas voluntárias.
Isso significa que igrejas que usam Malaquias 3 ou outros textos sobre dízimo de forma legalista e mentirosa, ou seja, dizendo que o povo deve dar 10% do seu salário para ser abençoado materialmente, ou que se não fizer será amaldiçoado materialmente, está rejeitando o sacerdócio de Jesus, está rejeitando o Evangelho. Elas trocam os firmes fundamentos da Palavra de Deus por usos indevidos de textos bíblicos para interesse próprio. Se praticamos uma forma de dízimo hoje, ele não deve ser um fardo sobre nós, mas um deleite; pois Cristo não nos chamou para nos oprimir, mas para descansarmos Nele.
Isso não significa, por outro lado, que devemos nos aproveitar e ser egoístas e gananciosos. "Deus não é injusto" (Hb 6.10), Ele não se esquecerá daqueles que, em amor, doaram seus bens para os trabalhos das igrejas locais ou para o sustento de pastores e missionários. Por outro lado, ele nos cobrará em relação a como temos usado nossos bens. Doar em uma congregação (10%, ou mais, o que Deus colocar em teu coração) é uma forma de reconhecer que aquela é uma igreja verdadeira, formada por pessoas que estão debaixo do sacerdócio de Cristo e que trabalha verdadeiramente para o avanço do Reino de Deus. Por outro lado, não devemos contribuir financeiramente com qualquer instituição que não tenha as marcas de uma igreja verdadeiramente cristã só porque ela tem "igreja" na placa.
Diferente do sacerdócio levítico, as promessas de Deus para nós no Novo Testamento são principalmente espirituais. Cristo está muito mais preocupado em nos dar do dom celestial, em nos fazer participantes do Espírito Santo, em nos fazer experimentar a boa palavra de Deus e as virtudes da era futura e em nos conceder o arrependimento do que abrir as janelas do céu físico e derramar sobre nós benção material sem medida, que nossas mulheres sejam férteis, que nossas plantações dêem muitos frutos e nosso salário seja multiplicado. Desse modo, aquele que está focado em bens materiais está ainda nos primeiros passos da caminhada cristã e precisa aprender mais, se é que realmente está no Caminho.
Por fim, lembre-se que pastores não são sacerdotes do resto dos crentes. Em Cristo, TODOS os crentes são sacerdotes. Portanto, um pastor não tem direito de receber dízimos dos crentes; é a igreja local, como assembleia dos santos, que recebe os dízimos, e ela quem deve decidir seu destino, inclusive para pagar um salário para o pastor, pois "digno é o trabalhador do seu salário" (1Tm 5.18). Isso significa que, em geral, embora não seja uma regra inviolável, o pastor principal da igreja não deveria ser a mesma pessoa que administra os dízimos e ofertas que ela recebe. Não confie totalmente em homens mortais e pecadores. Só em Cristo podemos encontrar perfeita "graça, a fim de sermos ajudados em tempo oportuno" (Hb 4.16).
3. Não devemos achar que o nosso próprio esforço para obedecer mandamentos pode nos aperfeiçoar, principalmente as leis cerimoniais. Não apenas o uso legalista do dízimo deve ser abolido, mas toda forma de tentar se relacionar com Deus baseado no nosso próprio mérito e esforço. Toda nossa vida só é genuinamente cristã se fundamentada nos méritos de Cristo, naquilo que Ele fez por nós. Assim, a santificação não significa você ter mais força de vontade para obedecer mandamentos, mas você ter uma confiança maior no poder de Cristo agindo em você para te tornar mais parecido com Ele. A promessa de Deus é irrevogável; se Cristo morreu por você para perdoar os teus pecados, eles já estão perdoados, não há nada que possa ser feito para tirar de você a tua herança.
4. Isso não significa que possamos ser negligentes na caminhada cristã. Se em Cristo temos confiança na salvação, essa confiança só pode ser plena quando nos tornamos "imitadores dos que pela fé e paciência herdam as promessas" (Hb 6.11-12). Nós nos esforçamos para cumprir os mandamentos para deixar bem claro que Cristo está operando em nós. Assim, embora as boas obras não sejam o fundamento da nossa salvação, elas são necessárias para confirmá-la, e Deus recompensará essas boas obras. Elas não são nossa salvação, mas são "coisas que acompanham a salvação" (Hb 6.9). Um salvo produz boas obras, um salvo glorifica a Deus, um salvo serve os santos (Hb 6.10), tal como a terra boa "produz erva proveitosa para aqueles por quem é lavrada" (Hb 6.7). "Mas a que produz espinhos e abrolhos, é reprovada, e perto está da maldição; o seu fim é ser queimada" (Hb 6.8).
Dependemos inteiramente do Espírito Santo, da boa palavra de Deus e dos poderes do mundo porvir para prosseguirmos na caminhada cristã. Nosso próprio esforço é inútil sem Ele. Você prossegue no amadurecimento conforme abandona a justiça própria, aceita a justiça de Cristo e tal justiça se torna mais e mais eficaz para produzir santificação em você.
CONCLUSÃO
Recapitulando: Melquisedeque era superior a Abraão, de modo que o sacerdócio segundo a ordem de Melquisedeque é superior ao sacerdócio da Lei, o levítico, pois Melquisedeque também é superior a Levi. Jesus é um sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque, pelo que Ele mudou a Lei, abolindo as cerimônias e toda forma de religiosidade que consiste apenas "em comidas, e bebidas, e várias abluções e justificações da carne, impostas até ao tempo da correção" (Hb 9.10). "E desta sorte é introduzida uma melhor esperança, pela qual chegamos a Deus" (Hb 7.19). Disso aprendemos que, assim como na antiga dispensação, Jesus é o centro de tudo. Isso deve guiar totalmente a maneira como lemos a Bíblia, como usamos nossos bens e como obedecemos todos os mandamentos de Cristo.