Ravenala recolheu-se em seu quarto, e de  lá aguçou os ouvidos,  para ouvir a conversa dos pais que há pouco se deitaram. Eles  falavam baixinho,  alguma coisa relacionada a ter mais um filho. A menina desejava muito  ter com quem brincar e dividir seus segredos. Talvez para um irmão, contasse sobre o amigo secreto pregado na cruz.

— A mulher demorou demais para buscar o filho, resmungou Corina. Quase perdemos a hora da missa.
— A mamãe disse que devo dormir agora...
— Vamos, Ravenala. Sua mãe já sabe que vamos à missa.
Na basílica Santa Teresinha, também estava o Amigo numa cruz bem maior do que aquela da casa da avó Corina. Ele tinha o rosto coberto de sangue, vermelho e vivo. ‘Como pode, sofrer tanto e ter semblante tão sereno?’ Ravenala teve vontade de conversar com Ele, mas ali, não podia. Se estivesse em seu quarto secreto....
 —Aqui podemos conversar, sem o barulho das palavras. Ninguém precisa ouvir nossa conversa: Eu penso, tu me ouves. Tu pensas,  Eu te escuto,  porque falamos de coração para coração — disse o homem que estava suspenso no madeiro.
— Você é Deus — perguntou a menina
 Ravenala repetiu a pergunta: você é Deus?
— Nasci antes de  toda criatura.
Corina olhou de soslaio para a neta.
— Preste atenção no que o padre diz.
O  padre direcionou a homilia ao livro do Eclesiástico, abordando realidades de mulheres mal casadas, mal amadas, cujos maridos deveriam ser canal da graça, mas aportam no cais da  perdição. Também elas trazem  seu quinhão de culpa. Casam-se com seus maridos e continuam a sonhar com o primeiro namorado. Pobre mulher, mesmo casada, nunca teve marido. Muitas têm suas fantasias: esperam que na lua-de-mel  o esposo a tome nos braços, suba o vão da escada e suas vestes núpcias sigam arrastadas. Mas o marido vai à frente. Espera pouco, e grita. ‘Não vem pro quarto?’ O fogo se apaga, as fantasias se dissipam. Agora casada, tem muito cenário e pouca cena.
Lá na Basílica, ocupando o  primeiro banco da fila esquerda, uma  viúva acomodou-se no assento, tentando dissimular a tremedeira. Houve um silêncio ensurdecedor e Ravenala fechou as cortinas deste capítulo, como se encerrasse o primeiro ato.
A missa terminou.
— Vamos, vó!
— Calma, menina! Deixe o padre se retirar.
A menina tremeu.Tinha pressa de chegar em casa. Desvendar os mistérios do quarto secreto. No entanto, lutava com seus medos: era noite. Nunca entrara à noite naquele quarto!
Teve medo.
Medo de visagem e de almas que partiram para o além.
— Não temas — disse seu anjo da guarda: Há um grande abismo entre o céu e a terra. Quem está lá, não vem aqui, e quem está aqui não pode ir lá. Só os anjos vão e vêm, porque são mensageiros e canal entre o céu e a terra.
— Os mortos não nos incomodam — disse Ravenala para si mesma — também não devemos incomodar os mortos.
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Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim..."