Transfiguração do Senhor
 
Não poderás ver a minha face, pois o homem não me poderia ver e continuar a viver. Eis um lugar perto de mim, disse o Senhor; tu estarás sobre a rocha. Quando minha glória passar, te porei na fenda da rocha e te cobrirei com a mão, até que eu tenha passado. Retirarei depois a mão, e me verás por detrás. Quanto à minha face, ela não pode ser vista”. (Ex. 33,20-23)
 
Minhas amadas, meus amados, que a paz do Altíssimo esteja presente na vida de vocês.

Segundo a tradição cristã, o evento da Santa Transfiguração de Nosso Senhor Deus e Salvador Jesus Cristo ocorreu 40 dias antes da crucificação e, na mesma dinâmica, a Igreja celebra a festa da “Transfiguração do Senhor”, revestindo-se de uma solenidade toda especial, 40 dias antes da Exaltação da Santa Cruz, isto é, no dia seis de agosto, evento esse que é lembrada desde o século IV pelos santos Efrém, o Sírio e João Crisóstomo.

Tal celebração, seguindo a revelação bíblica, convida-nos a dirigir o nosso olhar para o rosto do Filho de Deus, assim como fizeram os apóstolos Pedro, Tiago e João, que viram a sua transfiguração no alto do monte Tabor.
Convido a todas e todos vocês, inicialmente, a lermos o texto bíblico narrado por São Mateus, para, em seguida, refletirmos juntos sobre tão importante momento cristão.

Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e conduziu-os à parte a uma alta montanha. Lá se transfigurou na presença deles: seu rosto brilhou como o sol, suas vestes tornaram-se resplandecentes de brancura. E eis que apareceram Moisés e Elias conversando com ele. Pedro tomou então a palavra e disse-lhe: Senhor, é bom estarmos aqui. Se queres, farei aqui três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias. Falava ele ainda, quando veio uma nuvem luminosa e os envolveu. E daquela nuvem fez-se ouvir uma voz que dizia: Eis o meu Filho muito amado, em quem pus toda minha afeição; ouvi-o. Ouvindo esta voz, os discípulos caíram com a face por terra e tiveram medo. Mas Jesus aproximou-se deles e tocou-os, dizendo: Levantai-vos e não temais. Eles levantaram os olhos e não viram mais ninguém, senão unicamente Jesus. E, quando desciam, Jesus lhes fez esta proibição: Não conteis a ninguém o que vistes, até que o Filho do Homem ressuscite dos mortos. (Mt 17,1-9)

Sabemos que a Transfiguração do Senhor é um dos citados casos de teofania encontrados na Sagrada Escritura.

Teofania é um termo de origem grega (Théos, “Deus” e phanei, “aparecer”) e de uso teológico, utilizado para descrever alguma manifestação temporária e visível de Deus, ou da sua glória, tangível aos sentidos humanos. Pode ocorrer em forma humana ou angelical, em coisa, lugar ou por intermédio de extraordinários fenômenos da natureza. A maioria das teofanias é encontrada nos tempos veterotestamentários, principalmente em relatos dos livros de Gênesis e de Êxodo.

Diversos teólogos entendem que Teofania representa tão somente as aparições e não a essência de Deus, tomando por base João 1,18: “Ninguém jamais viu a Deus. O Deus (Filho) unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou”. Assim, pode-se dizer que ninguém pode ver a face de Deus. Porém, não se pode ver a face do Senhor tal qual ela é, mas somente por meio das teofanias, ou seja, por meio das revelações temporárias de Deus, especialmente por intermédio de seu filho Cristo Jesus em sua condição humana.

No Novo Testamento, somente existem registros de teofania relacionadas a Jesus Cristo, até porque Jesus foi o próprio Deus vestido com verdadeiro corpo e natureza humana, não sendo apenas Deus que apareceu na forma de um homem. Para exemplificar, podemos citar no período neotestamentário algumas passagens, tais como a voz celeste e a pomba que apareceram por ocasião do Batismo de Jesus (Mt 3,16-17), a voz ouvida durante o episódio da Transfiguração (Mt 17,5), bem como no episódio da semana da paixão (Jo 12,28). Jesus Cristo, tido como a teofania suprema, quando de Sua encarnação, depois de assunto ao céu, ou aparecendo a Paulo e a Estevão.

Nesta discussão sobre as teofanias, em ambos os Testamentos, e sobre Jesus como o próprio Deus encarnado, entraríamos ainda no que se diz Epifania que se refere à manifestação permanente do Senhor e não temporária, reflexões estas que deixo para outro momento. Voltemos, então, especificamente ao episódio da Transfiguração do Senhor.

Na Tradição Bizantina, onde evidenciamos uma profunda expressão da teofania contida na festa da Transfiguração do Senhor, podemos pegar como exemplo um dos seus hinos específicos: “Hoje, no Tabor, transformou Cristo a escura natureza de Adão: revestindo-a de seu esplendor, divinizou-a”. Ainda na Liturgia Bizantina, já no dia anterior à festa, evidencia-se a importância do evento em que aparecem a beleza primordial da criação e o inteiro plano salvífico: “Hoje, em tua divina transfiguração, a inteira natureza humana brilha de divino resplendor e exclama com júbilo: O Senhor transfigura-se salvando todos os homens”.

Pelo exposto, podemos, inicialmente, nos atentar à revelação da Transfiguração do Senhor referente a profunda teologia da divinização do homem. No Monte Tabor, Cristo Jesus transforma a natureza humana, revestindo-a com todo o seu esplendor, ou seja, Cristo reveste com sua glória a humanidade, não se despindo, no entanto, de sua divindade.

São João Crisóstomo chama-nos a atenção para a manifestação trinitária em tão importante evento, similar ao que ocorrera no batismo de Jesus: A voz do Pai dá testemunho, o Espírito ilumina e o Filho recebe e manifesta a palavra e a luz. A própria iconografia cristã oriental da Transfiguração do Senhor nos apresenta o chamado Ícone da Luz, o qual podemos ver no início desta reflexão. Trazendo, novamente, do Rito Bizantino, um dos seus hinos sacros, ou hinos temáticos, utilizado na Divina Liturgia da Igreja Ortodoxa (Kontakion), em comemoração a Transfiguração do Senhor, encontramos:

Ó Cristo, nosso Deus,
que te transfiguraste sobre o Monte Tabor,
mostrando aos teus discípulos a tua glória
tanto quanto lhes era possível contemplá-la,
faze brilhar também sobre nós a tua luz eterna.

Lembremo-nos de que transfigurar significa mudar de figura, mas o próprio Jesus, sua aparência física, não transfigurou, somente suas vestes: “Suas vestes tornaram-se resplandecentes e de uma brancura tal, que nenhum lavadeiro sobre a terra as pode fazer assim tão brancas.” (Mc 9,3), no limite possível da contemplação dos que com ele estavam, enaltecendo a sua glória. Destaca-se, ainda, a ocorrência de tal experiência na sequência do reconhecimento de Pedro, diante dos demais discípulos, que Jesus era o Cristo, Filho de Deus (Mc 8,29).

Similar ao Monte Horeb, onde Deus se dá a conhecer a Moisés, no Tabor, Deus manifesta seu desejo de dialogar com o homem, explicitando a glória de Jesus. Tal revelação, no alto do monte, também ocorrera com Moisés, com Elias e, na Transfiguração, com os discípulos lá presentes, representando toda a humanidade.

Lembremo-nos de que para chegarmos ao cume do monte, sua subida faz-se necessária, árdua tarefa, desafios precisam ser superados – pedras e espinhos –, fardos mundanos que nos pesam ao caminhar precisam ser eliminados – bens e alegrias ilusórias. Atentemo-nos, mais uma vez, ao cenário rochoso do ícone inicialmente apresentado. 

Merecem destaque as duas personagens que se encontram ao lado de Jesus, Moisés e Elias, que representam, respectivamente, a lei e os profetas, ou seja, todo o Antigo Testamento. Ambos se inclinam em adoração a Cristo que, ao centro, personifica a explicação e o cumprimento da Lei e de toda Profecia. Cristo Jesus traz-nos seu Evangelho que, de forma perfeita, contém toda a lei e o cumprimento das profecias.

O Missionário Vinícius Ribeiro apresenta-nos uma interessante reflexão de Orígenes, filósofo neoplatônico patrístico e um dos maiores teólogos e escritores do começo do cristianismo. Orígenes afirma que Pedro, apesar do desejo de agradar ao propor a edificação de três tendas como um memorial ao mover sobrenatural de Deus, cuja  glória pudesse ser permanentemente contemplada, capazes de abrigar Elias, Moisés e Jesus, cometeu um grande equívoco, pois, segundo ele, “para a Lei, os Profetas e o Evangelho não existem três tendas mas uma só, que é a Igreja de Deus”. Não vejo a “Igreja de Deus” nesta fala como uma instituição, ou a limitação de uma tradição específica, mas todo o universo salvívico do Criador, todos aqueles que aceitam dele participar e se propõem a atuar em sua contínua construção. Cada vez que tentamos resumir a glória e o mover de Deus a lugares e objetos, almejamos limitar o ilimitado, dar finitude ao infinito, “aprisionar” toda a Transcendência.

Na Tradição veterotestamentária, a nuvem sobre a tenda da revelação mostra  a presença de Deus (Shekhinah), o mesmo evidenciado no momento da Transfiguração do Senhor, ou seja, a nuvem sagrada que sinaliza a habitação ou presença de Deus. Em meio dela, logo após a proposta de Pedro, levado ao impulso humano de aprisionamento da divindade para que pudesse ser “contemplada”, fez-se ouvir: “Eis o meu Filho muito amado, em quem pus toda minha afeição; ouvi-o.” Isto é, não o aprisionem para ser contemplado, não o admirem, tampouco o temam, mas ouçam-no. Eis o convite para vivermos o Evangelho de Cristo Jesus. Ouvi-lo, neste caso, não representa apenas o processo estático de escutar a fala de alguém, mas sim a disposição dinâmica de segui-lo. Assim como os presentes, somos convidados, permanentemente, a “ouvir” a voz de Jesus, não uma escuta inerte, mas um ouvir atento e atuante, vivendo e concretizando a sua Palavra.

Ao ouvirem a voz retumbante do chamado de Deus, os discípulos caíram com a face por terra e tiveram medo, pois não suportaram o esplendor da gloria de Deus, bem como o aterrorizante convite de “ouvir” Jesus. Sabemos que, se  entrarmos em contato com a Palavra de Deus nas Sagradas Escrituras e não nos “incomodarmos”, não nos preocuparmos, não nos mobilizarmos, algo está errado, não a estamos  ouvindo corretamente, ou não a acolhemos como verdade a ser cumprida. O Evangelho é inquietador, a Palavra é aterrorizadora quando a ouvimos e a acolhemos, o chamado é amedrontador, pois nos evidencia nosso limite diante da missão que nos é apresentada. Entretanto, na mesma Palavra, no mesmo convite, aos de coração aberto e disponíveis, é apresentado o amor infinito do Criador, a presença permanente do seu Santo Espírito que encoraja, fortalece, capacita ao cumprimento do chamado. O temor inicial transforma-se em alegria infinita, caso estejamos verdadeiramente unidos com Jesus.

Ao ouvirmos o chamado de Deus, um misto de temor e alegria nos invade, pois, ao mesmo tempo em que não suportarmos, pela nossa limitação humana, o esplendor da glória de Deus, Ele nos permite sentir sua força e seu poder para nossa condução. Percebemos nossa escuridão, assim como os discípulos “caíram no sono”, mas, ao “acordarmos”, como eles fizeram, entregando-nos incondicionalmente a Deus, veremos a face de Cristo envolto em sua glória. Os discípulos não entenderam o ocorrido, assim como nós, quando evidenciamos um lampejo da divindade gloriosa de Deus, mas se nos abrirmos à Palavra e possibilitarmos ser conduzidos por ela, não apenas desfrutaremos da glória de Deus, mas seremos capazes de “descer do monte” e disseminarmos tais verdades por intermédio de nossas ações e de nosso exemplo cotidiano. O reconhecimento de nossa limitação é o primeiro passo para nos abrirmos à transformação que a Palavra pode fazer em nós.

Assim como aos discípulos presentes, Jesus está nos mostrando a figura de seu rosto transfigurado e, se olharmos para ele com os olhos da fé, descobriremos a necessidade que temos de sua Palavra, de sua luz para caminharmos em sua trilha, de sua força para nos mantermos como seus fieis seguidores, de sua Graça para que, de fato, possamos viver seu Evangelho.

Lembremo-nos sempre das palavras de Paulo aos Coríntios: “Porque Deus que disse: Das trevas brilhe a luz, é também aquele que fez brilhar a sua luz em nossos corações, para que irradiássemos o conhecimento do esplendor de Deus, que se reflete na face de Cristo.” (2Cor 4,6)

Creiamos, a exemplo de Paulo, que, pela Transfiguração, Jesus mostra a possibilidade de mudança dessa realidade hostil em que vivemos, que ela pode ser verdadeiramente transfigurada.

Que a nossa face seja transfigurada pelo fortalecimento e amadurecimento de nossa fé, que possamos vive-la verdadeiramente. É este o meio que o Senhor deixou aos que desejam crescer em espírito e santidade. Por essa razão, precisamos “entrar na nuvem” e, mesmo sem ver, crendo e obedecendo a determinação do Senhor – Escutai-O! Caminhemos pela fé, pela confiança absoluta na palavra infalível de Deus. Peçamos a Ele sua ajuda para que creiamos com mais firmeza, não segundo nossa razão humana, mas por seu intermédio, pela força de seu Espírito.

Um fraterno abraço,