Pela Graça Sois Salvos

COMO ANDÁVAMOS

João Calvino define a morte espiritual, em seu comentário ao livro de Efésios, como "a alienação da alma de Deus", pois “a união de nossa alma com Deus é a verdadeira e única vida”. Em Efésios 2, Paulo explica que há três princípios que nos mantém nesse estado de alienação: o mundo, o príncipe da potestade do ar e as inclinações da carne. Nesse artigo falaremos sobre a ação de Deus para nos livrar dessa morte espiritual dando-nos nova vida: a regeneração.

Com “mundo” o apóstolo não está se referindo ao comportamento normal do mundo físico, cujo curso foi ordenado por Deus, mas a depravação da sociedade como um todo. Há algum sentido em que a organização social humana leva os indivíduos a uma série de pecados terríveis; mas isso não significa que o homem nasça bom e seja apenas educado para o mal pelo contexto em que vive. Nossa natureza é essencialmente má, de modo que os seres espirituais e o mundo podem apenas contribuir para que a nossa depravação se torne mais destrutiva.

Com “príncipe da potestade do ar”, a Bíblia está se referindo a Satanás e todo seu exército demoníaco. Paulo ensina anteriormente em Efésios que Cristo é o governante do Universo. Por isso, Satanás só governa o mundo no sentido de que ele é o “espírito que agora atua nos filhos da desobediência” (Ef 2.2). Este é o principal terreno onde está posto o trono do Diabo, aqueles que insistem em se rebelar contra o governo de Cristo; ou seja, o mundo como descrito no parágrafo anterior. Quando somos retirados desse mundo, os demônios perdem toda a autoridade sobre nós.

Isso não significa que Satanás cria a maldade do homem. Os seus servos são os filhos da desobediência, aqueles que vivem “segundo as inclinações da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos” (v. 3). Então o príncipe desse mundo tem domínio sobre eles apenas porque já há uma maldade intrínseca à natureza deles. Aqueles que estão sem Cristo não podem resistir ao domínio demoníaco simplesmente porque eles não têm qualquer capacidade espiritual para lutar com ele, visto que estão espiritualmente mortos.

Essa não é a condição de alguns poucos. Segundo o versículo 3, TODOS NÓS, mesmo os mais religiosos, como o apóstolo Paulo, eram desobedientes. O pecado de Adão não é transmitido a nós por imitação, como crêem alguns, mas pela descendência. Como disse João Calvino, nós trazemos o pecado em nosso ser como as serpentes trazem seu veneno desde o ventre. Por causa disso todos os homens estão, desde o nascimento, destinados a sofrer a ira de Deus, pois sua maldade é inata, eles vivem em uma sociedade rebelde contra Deus e que é chefiada por um ser espiritual que é inimigo do Senhor.

Nos versículos 11-12 o apóstolo pede que nós que não somos judeus e que fomos salvos nos lembremos de como era a nossa situação antes da salvação. Ele descreveu a situação do perdido em termos gerais nos versículos 1 a 3, agora explica as desvantagens que o perdido que não é judeu tem em relação ao judeu. A vantagem do judeu é que ele tinha a palavra de Deus, as alianças, a legislação, o culto, as promessas, grandes antepassados (Abraão, Isaque, Jacó...), etc.. Eles tinham esperança e tinham um relacionamento com Deus. O gentio não, ele só tinha os ídolos.

Os não-judeus estavam sem Cristo porque todas essas leis cerimoniais do Antigo Testamento eram a maneira como Deus comunicava Cristo ao Seu povo. Tudo na religião judaica tinha esse propósito, conduzir os homens a Jesus. Logo, aqueles que não participavam dessas cerimônias não podiam conhecer o Senhor, nem crer nele, então não podiam ser salvos. Por isso os gentios não tinham esperança nem Deus no mundo. A expressão "sem Deus" no original é atheoi, ateu. Ela não significa sem Deus no sentido de que não acreditavam em divindade nenhuma, mas que, como eles não criam no Deus verdadeiro, estavam completamente alienados Dele.

O apóstolo destaca a incircuncisão dos gentios como sinal da sua desvantagem porque ela era uma parte crucial da Lei. O Senhor disse a Abraão em Gênesis 17 que a circuncisão seria o sinal da aliança que estava fazendo com ele e sua descendência. Pela circuncisão, a descendência de Abraão seria separada do resto da humanidade. Outros povos também praticavam esta cerimônia, como os egípcios, mas eles usavam esse ritual mais como uma medida de higiene do que exatamente como prática religiosa [1]. Mas entre os judeus a circuncisão era um dos artigos mais importantes da sua religião.

A circuncisão não era apenas para a descendência física de Abraão, mas para todos quanto se juntavam ao povo de Deus, de tal sorte que se alguém não recebesse na carne o sinal, deveria ser eliminado do povo. Isso aponta para o fato de que a separação do povo de Israel das outras nações era uma separação de seus pecados e idolatrias, e não uma separação final, haja vista que desde o início já era tido como algo normal que um estrangeiro fizesse parte desse povo e participasse plenamente da sua religião divinamente estabelecida, circuncidando-se (cf. Gênesis 34.14-24).

Romanos 4.11 diz que Abraão “recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça da fé que teve quando ainda incircunciso”. Ela era um lembrete para Abraão de que ele havia sido aceito por Deus por causa da sua fé. Isso prova que a circuncisão, com toda a sua importância, era apenas uma sombra de uma realidade que devia ser interior. O verdadeiro povo de Deus não era o Israel étnico, aqueles que se cortavam na carne, mas o Israel espiritual, que O serve de coração (cf. Rm 2.28-29).

A circuncisão, portanto, representa a vitória sobre a natureza carnal (Dt 10.16, Dt 30.6). Um gentio que se convertesse deveria virar judeu e se circuncidar. Mas a circuncisão na carne não valia nada sem a circuncisão no coração, a conversão a Deus. E esta circuncisão os gentios tinha acesso em Jesus Cristo. Por isso, quando nos tornamos um só com Cristo pela fé, nós nos tornamos participantes da aliança do Senhor com Israel. O pacto que Deus fez com Abraão em Gênesis 17, declarando-se seu Deus e da sua descendência, e tudo aquilo que a circuncisão representa, aplica-se igualmente aos cristãos de hoje. Uma vez que nós somos circuncidados no coração, não andamos mais segundo nossa natureza carnal e, consequentemente, ficamos livres do mundo e de Satanás. O Evangelho é, entre outras coisas, uma declaração de liberdade.

SALVOS PELA GRAÇA

Se alguém que não recebeu a Cristo é espiritualmente incapaz, morto, ele não tem a menor capacidade de servir a Deus, de crer no Evangelho, de obedecer aos mandamentos. Portanto, a única esperança do perdido é Deus se inclinar para ele, por uma imerecida condescendência, para salvá-lo. É isso que o Senhor faz, “por causa do grande amor com que nos amou” (Ef 2.4), Ele nos dá vida nova por meio de Jesus. Antes de ter qualquer relacionamento com o Senhor, antes de ser capaz de receber qualquer benção espiritual em Jesus Cristo, o homem precisa ser ressuscitado espiritualmente e nascer para Deus. Isso deixa claro que qualquer esforço religioso, qualquer especulação filosófica sobre Deus ou qualquer espiritualidade daquele que está sem Cristo é carnal, terrena, animal e demoníaca.

Daí entendemos porque Paulo enfatizou tanto que a suprema grandeza do poder que ressuscitou Jesus é o mesmo que nos dá vida espiritual no capítulo 1, pois assim não há espaço para qualquer cooperação humana na salvação. Assim como o poder do Senhor foi suficiente para ressuscitar Jesus dos mortos, sem que para isso houvesse nenhuma necessidade de que o corpo físico Dele ajudasse em algo, pelo contrário, sendo apenas um alvo desse grandioso poder, assim também o pecador espiritualmente morto não pode contribuir em nada para a sua própria salvação, mas Deus é aquele que, sozinho, “nos ressuscitou, e nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus” (v. 6).

O versículo 8 diz: “porque pela graça sois salvos, mediante a fé (pisteos); e isto (touto) não vem de vós; é dom de Deus”. Isso levanta uma importante discussão: a fé é um dom de Deus? Muitos argumentam que não, baseado no fato de que o pronome usado por Paulo, touto, é demonstrativo no gênero neutro, enquanto a palavra fé, pisteos, é de gênero feminino, de modo que “isto” não pode se referir a “fé”.

Tudo o que dissemos anteriormente nos leva à conclusão óbvia que a fé é um dom de Deus, visto que o homem espiritualmente morto não é capaz de crer por conta própria, de modo que aqueles que acreditam que a fé é uma ação do homem não apenas precisam provar isso biblicamente, como também devem explicar como a epístola de Paulo aos efésios não contradiz essa crença. De modo que ainda que eles demonstrem que Efésios 2.8 não diz que a fé seja dom de Deus, eles precisam demonstrar também que o resto das Escrituras também não ensinam isso.

Existem, porém, outras teorias quanto ao versículo supracitado que favorecem nosso ponto de vista. Alguns eruditos, como F.W. Grosheide e João Calvino, acreditam que touto se refere a todo o processo da salvação, inclusive a fé. Outros, como Beza, Erasmo e Hugo de Grotius, acreditam que, já que touto nem sempre precisa corresponder em gênero ao seu antecedente (embora na maioria das vezes sim), bem como uma série de outras razões, o contexto indica que “isto” se refere à fé.

Um argumento para esta última teoria é o da própria fluidez do texto. Paulo diz que somos salvos pela graça mediante a fé, depois diz “e isto não vem de vós; é dom de Deus”. Ora, se é pela graça, obviamente não vem de nós, de modo que seria uma redundância sem explicação. A maneira como a expressão aparece no texto dá a entender que ele está acrescentando algo novo, não repetindo a mesma coisa com outras palavras, explicação para o fato de que, geralmente, o homem comum, ao ler o texto, entende que “isto” se refere mesmo à fé. Ainda que não cheguemos a uma conclusão definitiva, ambas as coisas são verdade: a fé é dom de Deus, porque todo o processo da salvação é dom de Deus.

COMO ANDAMOS AGORA

Qual a participação das boas obras na salvação? Elas são a consequência da salvação, já que, segundo o versículo 10, nós que fomos salvos fomos criados EM Jesus Cristo, ou seja, nós nascemos de novo e recebemos a vida de Jesus em nós, PARA que nós praticássemos as obras de Jesus. Essa criação aqui não está se referindo à criação natural, mas da regeneração.

O texto diz que foi Deus quem preparou as obras dos salvos por Jesus antes que eles as praticassem. A expressão "de antemão preparou" (proetoimasen) é a junção da preposição pro (antes que, pré) com a palavra hetoimazó (fazer, preparar), e dá o sentido de preparar anteriormente. Preste atenção, ele não diz que Deus nos AJUDA a praticar boas obras. Não diz que Ele mostrou o caminho de quais obras nós devemos praticar, então nos deixou pela nossa própria força para fazer o que devemos fazer. Assim como nós fomos predestinados para adoção de filhos (Ef 1.5), as boas obras que praticamos e que provam que nós somos filhos também já foram preparadas por Deus de antemão. Por isso a salvação é pela graça, porque até mesmo as boas obras que testificam que nós somos salvos são fruto da graça em nós.

A predominância da graça sobre as obras fica mais evidente a partir do versículo 14, quando é dito que Jesus aboliu a separação entre judeus e gentios acabando com aquilo que criava essa separação, "a lei dos mandamentos na forma de ordenanças". Paulo está se referindo ao que nós chamamos de leis cerimoniais, ou seja, aqueles mandamentos que foram dados especificamente para o povo judeu praticar, como o sacrifício de animais, as leis relacionadas ao culto, os rituais de purificação, etc.. Uma vez que isso foi abolido, e ninguém mais precisava praticar essas coisas, a separação foi desfeita.

Como Jesus fez isso? Pelo seu sangue, ou seja, pelo seu sacrifício na cruz. Quando Cristo veio ao mundo, morreu e ressuscitou, Ele cumpriu todas aquelas cerimônias no nosso lugar. Então, quando nós nos ligamos a Ele pela fé, é como se nós tivéssemos praticado tudo aquilo, de modo que nós não precisamos praticar por nós mesmos. Por isso nós não sacrificamos animais, comemos carne de porco, não temos levitas na igreja, etc..

Então não há mais nenhuma diferença entre judeu e não-judeu diante do Senhor. Tanto um quanto outro fazem parte do povo de Deus se estiverem ligados a Cristo, e os dois estão sem Deus e sem esperança se estiverem sem Cristo. Aquelas cerimônias, ou a descendência de Abraão, e tudo aquilo que tornava os judeus especiais, perdeu o valor. Mas todas as promessas do Antigo Testamento são para nós em Jesus Cristo.

[1] HERÓDOTO. História. Versão para o português de J. Brito Broca. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/historiaherodoto.pdf>