Dupla identidade
“Aconteceu naqueles dias que, sendo Moisés já homem, saiu a seus irmãos, e atentou para as suas cargas; viu que um egípcio feria um hebreu, homem de seus irmãos. Olhou a um e outro lado, vendo que não havia ninguém, matou ao egípcio, e escondeu-o na areia.” Êx 2;11 e 12
Moisés em sua dupla identidade. Formalmente egípcio, sentimentalmente, hebreu. Passeava entre os escravos, como um supervisor de Faraó, mas, ao ver um dos de seu sangue ferido, a identidade formal sucumbiu ante o laço de sangue, matou ao soldado que era dos “seus”, para defender um dos seus irmãos.
A dupla identidade funciona em filmes de super-heróis, mas, na vida, mais dia, menos dia, o que somos, digo, aquilo que prepondera em nosso ser, assoma, sobretudo, em momentos de crise. Vulgarmente se diz: “A ocasião faz o ladrão”. Isso é falso! A ocasião é a crise que manifesta o ladrão que habita no interior do homem ambíguo, que encena ser honesto, mas, oculta um ladrão. O íntegro não sucumbe a ocasiões favoráveis, antes, mantém sua integridade. Jamais vi a ocasião presa por roubo, sempre é o ladrão o culpado.
Porém, agir de coração como hebreu e seguir com privilégios da Corte egípcia era quase impossível; assim, “olhou a um e outro lado, vendo que não havia ninguém ali, matou ao egípcio, e escondeu-o na areia.” Certificou-se de que não haveria testemunhas, depois, ocultou o cadáver tentando enterrar com ele, seu feito. Acontece que, o próprio irmão que defendera, espalhou a notícia. Tinham um defensor “egípcio”; “E tornou a sair no dia seguinte, eis que dois homens hebreus contendiam; e disse ao injusto: Por que feres a teu próximo? O qual disse: Quem te tem posto a ti por maioral e juiz sobre nós? Pensas matar-me, como mataste o egípcio? Então temeu Moisés, e disse: Certamente este negócio foi descoberto.” Vs 13 e 14
O anseio de ser bem quisto pelos dois povos ao mesmo tempo se revelara impossível, desde então. Como, quem fica sobre o muro acaba levando pedradas de ambos os lados, não ficou nem egípcio, nem hebreu, teve que fugir, acabou no deserto de Midiã. O que O Eterno fez depois, com ele, é outra história; por agora estamos analisando a dupla identidade.
Quantos são “Crentes” acariciando a um ser mundano dentro de si, e, à crise de uma tentação mais incisiva escandalizam a Obra de Deus? Ou, outros que, tendo sido salvos, por uma picuinha qualquer, voltaram as costas pra igreja, não conseguem agir mais como mundanos, levam uma vida dupla, nem ímpio, nem santo, apenas uma confusão que não serve cabalmente ao inimigo, nem, presta pra obra de Deus?
Tiago fez da duplicidade o tema de sua epístola. “Peça-a, ( sabedoria ) porém, com fé, em nada duvidando; porque o que duvida é semelhante à onda do mar, que é levada pelo vento, lançada de uma para outra parte. Não pense, tal homem, que receberá do Senhor alguma coisa. O homem de coração dobre é inconstante em todos os seus caminhos.” 1;6 a 8 O primeiro duplo, crente incrédulo, pede a coisa certa, e duvida. Não vai receber.
“Se alguém é ouvinte da palavra, não cumpridor, é semelhante ao homem que contempla ao espelho o seu rosto natural; porque contempla a si mesmo, vai-se, e logo esquece de como era.” O segundo duplo, o não praticante. A Palavra é boa como teoria, mas, na prática, prefere fazer as coisas do seu jeito mesmo.
Temos ainda o teórico, bom de propaganda e ruim de produto. “Meus irmãos, que aproveita se alguém disser que tem fé, e não tiver as obras? Porventura a fé pode salvá-lo?” 2;14 Nos lábios, amor, nos atos, indiferença.
O duplo de língua. “Com ela bendizemos a Deus Pai, com ela amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus. De uma mesma boca procede bênção e maldição. Meus irmãos, não convém que isto se faça assim.” 3;9 e 10
Enfim, todas essas duplicidades são traços de um, que, como Moisés, ansiava pertencer a dois povos. Naquele caso era fisicamente mesmo. No nosso, a duplicidade possível é espiritual; Tiago resume: “Adúlteros e adúlteras, não sabeis que a amizade do mundo é inimizade contra Deus? Portanto, qualquer que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus.” 4;4
Finalmente, uma tomada de posição: “Sujeitai-vos, pois, a Deus, resisti ao diabo, ele fugirá de vós. Chegai-vos a Deus, ele se chegará a vós. Alimpai as mãos, pecadores; vós de duplo ânimo, purificai os corações.” Tg 4;7 e 8
Se nossa escolha é a ditosa sina de ovelhas, que nossa dieta não seja de lobos; teríamos que comer a nós mesmos, numa autofagia espiritual.