A necessária "transgressão"

“E disse Jesus: Alguém me tocou, porque bem conheci que de mim saiu virtude. Então, vendo a mulher que não podia ocultar-se, aproximou-se tremendo e prostrando-se ante ele declarou-lhe diante de todo o povo a causa por que lhe havia tocado, e como logo sarara.” Luc 8; 46 e 47

Sob vários aspectos essa passagem pode ser analisada. As restrições da Lei de Moisés, para quem tivesse fluxo como ela, por exemplo. “Mas a mulher, quando tiver fluxo, o seu fluxo de sangue estiver na sua carne estará sete dias na sua separação, qualquer que a tocar será imundo até à tarde. E tudo aquilo sobre o que ela se deitar durante a sua separação, será imundo; e tudo sobre o que se assentar será imundo.” Lev 15; 19 e 20

Muitos interpretam mal a intenção da palavra que foi traduzida por imundo; cujo sentido mais exato é impuro, inadequado. Não há qualquer conotação moral, espiritual; antes, num contexto em que se desconhecia vírus, bactérias, Deus ordenou certos ritos de caráter profilático, como a separação de leprosos e outras enfermidades potencialmente contagiosas. Quem fosse tocado por um dos tais deveria se purificar, separar-se por um tempo. Assim, a Lei deixaria a mulher afastada de Jesus e dos demais, contudo, transgrediu. Essa é a razão pela qual temia assumir que fora ela que O tocara.

A maioria dos judeus entendera a Lei como um fim em si. Do Sábado que fora vertido num ídolo Jesus ensinou: “O Sábado foi feito por causa do homem, não o homem por causa do Sábado.” Assim, a saúde e o bem estar humanos interessam a Deus mais que um rigor legalista indiferente. A “transgressão” da mulher derivava de uma vívida esperança, confiante fé que o Salvador poderia curá-la, como de fato o fez. Segundo a Lei, se fosse Ele mero homem, teria ficado impuro também, após o toque. Entretanto, ela ficou limpa, sã.

Interessante também a “incerteza” do Mestre: “Alguém me tocou.” Claro que Ele sabia quem fora e por quê! Contudo, deixou no ar, para que ela assumisse. “Vendo a mulher que não podia ocultar-se…”

Embora aquela fosse uma transgressão virtuosa, agimos assim em todas. Só assumimos se não der para ocultar. A primeira providência, uma vez inaugurada a era da consciência foi tentar ocultar o que passou a incomodar, no caso, a nudez. Duas coisas são necessárias sobre o que anseio esconder; primeiro: Sei que é mau, um erro; segundo: não quero que outros saibam.

Esconder desvios de caráter é relativamente fácil, em se tratando dos homens; absolutamente impossível, em face de Deus. “E não há criatura alguma encoberta diante dele; antes todas as coisas estão nuas e patentes aos olhos daquele com quem temos de tratar.” Heb 4; 13 Então, ainda que possamos construir um biombo hipócrita entre nossos erros e a plateia, Deus e nossa consciência saberão plenamente.

O fato é que podemos ser legalistas mesmo “em Cristo”, digo, não derivando nossa crença do código de Moisés. Basta que cumpramos os rituais eclesiásticos requeridos, coisa que podemos fazer com máculas na consciência. A eficácia da redenção de Jesus atinge também aí; “o sangue de Cristo, que pelo Espírito eterno ofereceu a si mesmo imaculado a Deus, purificará as vossas consciências das obras mortas, para servirdes ao Deus vivo.” Heb 9; 14

Assim, o que foi purificado deveras do fluxo de antigos pecados, não que não cometa mais, mas, como aquela mulher vê que não pode esconder de Deus. De uma consciência em plena atividade, pois, depende a saúde de nossa fé. “Conservando a fé, e a boa consciência, a qual alguns rejeitando fizeram naufrágio na fé.” I Tim 1; 19

Sim, muitas doenças tidas como psíquicas são meras consequências de uma consciência “walking dead”. Digo, viva no sentido que ainda acusa o pecado, não foi cauterizada; morta em face à impotência de reconhecer suas mazelas ante Aquele que pode purificar.

Uma consciência saudável pauta nosso modo de vida, sem dúvida alguma. “Os ímpios fogem sem que haja ninguém a persegui-los; mas os justos são ousados como um leão.” Prov 28; 1 Nem sempre essa fuga do ímpio demanda movimento do corpo, antes, sofismas, eufemismos, distorções que visam “apaziguar” sem Cristo, os reclames da luz.

Assim como Jesus não forçou aquela mulher à confissão, também é conosco. Naquele caso certificou que sabia, e legou ao arbítrio dela a reação. No nosso não é diferente; conscientiza mediante Sua Palavra, e nos desafia. Infelizmente, a maioria teme mais a crítica humana, que a rejeição de Deus. Naquele caso, sangue fluindo era a enfermidade; no nosso, o fluir de Seu Sangue Bendito, nossa cura. Também precisamos transgredir, contra a multidão que duvida.