O tempo de Deus

“Nós, porém, não somos daqueles que se retiram para a perdição, mas daqueles que creem para a conservação da alma.” Heb 10; 39

No intento de renovar a fé dos tibios hebreus o autor contrasta duas situações: a dos que creem para conservação da alma, e a dos que se retiram para a perdição.

A incredulidade tem múltiplas faces, mas, sem dúvida, a mais evidente é a que dá as costas ao caminho da fé. Embora crer, a muitos seja mera abstração, inclinação mental, a implicação é evidente. Demanda permanência no âmbito dos salvos; pois, os que disso deixam, retiram-se. Não me refiro, em absoluto, a denominações, truques usados por mercenários que, no afã de manter seus impérios, associam certas bênçãos, quando não, a própria salvação, à permanência neles. Acontece que, para tais líderes, crer para conservação da alma é muito pouco; ensinam a crer para os deleites do corpo, riquezas, saúde perfeita…

Na verdade, centralizar a eficácia da Obra Eterna de Cristo apenas nessa vida é desvalorizá-la ao extremo. Ao fazermos isso, acentuamos nossa miséria, mais, que qualquer outro miserável, que não faça menção do Santo Nome do Senhor. Paulo adverte: “Se esperamos em Cristo só nesta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens.” I Cor 15; 19

Acontece que, ir a Ele por fins terrenos é uma forma de se retirar para a perdição, ainda que, mantendo o pé imiscuído onde se professa a mensagem de salvação. Crer para conservação da alma implica conteúdo; em quê se crê, e como isso reflete-se em nossas vidas.

Ainda que Deus se ocupe das necessidades dos seus, reduzir Sua atuação às coisas banais que até ímpios conseguem via trabalho é patente recusa ao salto da fé; pouco importa o que verta dos lábios. Isso nivelaria o Excelso ao banal, como se fosse possível.

Davi, aliás, recusou a satisfazer deleites efêmeros a preço de sangue. Samuel narra que ele sentiu desejo de beber da fonte de Belém, que estava em poder dos inimigos; três valentes romperam no arraial adversário e trouxeram o mimo ao rei, que recusou a beber, com essas palavras: “Guarda-me, ó Senhor, de que tal faça; beberia eu o sangue dos homens que foram com risco da sua vida?” II Sam 23; 17

Entretanto, a salvação da alma não é algo pueril, superficial; antes, tem implicações eternas, e demandou um resgate de igual calibre, de modo quê, não nos resta escolha se queremos ou não “beber” o que custou sangue. Quem não fizer isso estará fora. A Palavra do Senhor é categórica: “…Na verdade, na verdade vos digo que, se não comerdes a carne do Filho do homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos.” Jo 6; 53

Tal qual a água é vital para o corpo, o Sangue de Jesus o É para a conservação em vida, da alma. Tanto que, Isaías já alegorizara tal feito usando a metáfora da água ; “E vós com alegria tirareis águas das fontes da salvação.” Is 12; 3 O Salvador pregando à samaritana usou a mesma linguagem: “Mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que salte para a vida eterna.” Jo 4; 14 Uma vez ressuscitado apareceu a João e reiterou seu convite nos mesmos termos: “E o Espírito e a esposa dizem: Vem. E quem ouve, diga: Vem. E quem tem sede, venha; e quem quiser, tome de graça da água da vida.” Apoc 22; 17

Assim, diverso da mensagem dos que instigam a ofertar para sermos abençoados é de graça, no que tange à salvação. Porém, demanda uma entrega tal, que é como se morrêssemos para Cristo viver em nós. “Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional.” Rom 12; 1

Os hebreus tinham situado suas expectativas no seu tempo para a volta do Senhor; como não acontecera, começaram a se retirar. Ora, se nosso culto deve ser racional, como vimos acima, o uso da razão nas coisas Divinas demanda que nos acheguemos a Deus nos Seus termos, não nas nossas inclinações e anseios. Afinal, divinizar nossas expectativas é uma forma sutil de de nos retirarmos para perdição.

Em última análise, entender o tempo de Deus não é uma condição para que venhamos a crer; antes, uma consequência advinda sobre os que creem e perseveram na doutrina do Senhor. “Quem guardar o mandamento não experimentará nenhum mal; e o coração do sábio discernirá o tempo e o juízo.” Ecl 8; 5