A visão cristã dos três venenos apontados pelo budismo.
Caríssimas irmãs e caríssimos irmãos, que a paz esteja com cada um de vocês!
Ao ler sobre os três venenos apontados pelo budismo que impedem o desenvolvimento do ser em direção ao seu verdadeiro despertar, veio-me à mente mais um ponto de convergência entre as tradições religiosas que estimulam a harmonia e o amor entre os seres.
Nos ensinamentos budistas, são chamados de os três venenos, ou as três contaminações, a ganância (avareza ou avidez), o ódio (raiva ou ira) e a ignorância (estupidez ou ilusão), os quais geram nos seres o sofrimento e, por conseguinte, produzem milhões de males. Uma das imagens que se apresenta a respeito, pode se lida no Sermão da Grande Descoberta, secular texto zen-budista chinês, apresentado no site da comunidade Zen-budista de Curitiba, no qual os três venenos, por causarem milhões de males, comparam-se à “árvore que têm um único tronco mas inúmeros galhos e folhas. Cada veneno produz tantos milhões de males que o exemplo da árvore mal é uma comparação apropriada”.
Ao se falar, no budismo, em ganância, avareza ou avidez, aponta-se para a escravidão dos desejos mundanos. Seria a tentativa permanente de aprisionar o que é desejado, quer sejam objetos, pessoas, pensamentos ou situações, é o próprio apego que controla o ser, obstaculizando seu caminhar em direção à iluminação.
Quando Jesus enviou seus apóstolos para anunciar o reino de Deus, uma de suas recomendações foi que deveriam partir apenas com a roupa do corpo e calçando somente sandálias. Lembremo-nos, também, da passagem bíblica do jovem rico:
Tendo ele saído para se pôr a caminho, veio alguém correndo e, dobrando os joelhos diante dele, suplicou-lhe: “Bom Mestre, que farei para alcançara vida eterna?” Jesus disse-lhe: “Por que me chamas bom? Só Deus é bom. Conheces os mandamentos: não mates; não cometas adultério; não furtes; não digas falso testemunho; não cometas fraudes; honra pai e mãe.” Ele respondeu-lhe: “Mestre, tudo isto tenho observado desde a minha mocidade.” Jesus fixou nele o olhar, amou-o e disse-lhe: “Uma só coisa te falta; vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me.” Ele entristeceu-se com estas palavras e foi-se todo abatido, porque possuía muitos bens. E, olhando Jesus em derredor, disse a seus discípulos: “Quão dificilmente entrarão no Reino de Deus os ricos!” (Mc 10:17-23)
Entendamos adequadamente as palavras de Jesus. O apego não está na posse, tampouco o desapego na não posse. A ganância está na escravidão gerada pelo desejo, nas amarras que nos atam aos desejos mundanos, ao aprisionamento que temos em relação às coisas, às pessoas, aos pensamentos, ao status e às sensações diversas relacionadas à nossa passagem por este mundo. Quando Jesus disse: vai e vende tudo que é seu e dê aos pobres, Ele apontou para o desapego dos bens, dos vínculos mundanos e para que o jovem se dedicasse às coisas do Reino de Deus: ao bem estar dos menos favorecidos, à partilha das posses, ao rompimento das amarras que, tão fortemente, o aprisionavam às coisas materiais. O problema não era ele possuir, mas sim ao apego com o qual se relacionava com o mundo.
Ao ler o livro de Valdemar Falcão, intitulado “O Deus de cada um”, deparei-me com uma história narrada que se passou com Ibn Arab, importante figura no islamismo sufi.
Ibn Arab, em uma de suas viagens, decidiu visitar um sábio sufi, absolutamente desapegado das coisas materiais, que vivia como pescador. Em seu cotidiano, pescava três peixes por dia, cortando a cabeça de cada um deles e as mantendo para si, distribuindo o restante para os pobres locais. Satisfazia-se, plenamente, com a sopa que fazia com as cabeças de peixe. Após a programada visita, em uma pequeno barraco, praticamente sem objetos e de limitada mobília, o asceta solicitou que Ibn Arab, ao passar pela cidade, fizesse uma visita ao seu mestre espiritual, levando-lhe suas preocupações com o seu limitado avanço espiritual. Pois assim o fez.
Ao chegar na cidade, após seguir as orientações do endereço do mestre indicado, qual foi a sua surpresa ao se deparar com uma belíssima casa e com um homem de destacada fortuna. Intrigado, Ibn Arab transmitiu o recado do respeitado asceta, ainda não entendendo bem a situação. Maior ainda foi sua surpresa ao ouvir do mestre que o seu discípulo, o pobre pescador, enfrentava dificuldades no desenvolvimento espiritual pelo seu apego às coisas da matéria.
Tempos depois, teve outra oportunidade de rever o pobre pescador e trouxe-lhe, bastante constrangido, as palavras do mestre da cidade. Ao ouvi-las, o pescador caiu em copioso choro e explicou a situação para o aturdido Ibn Arab. Disse-lhe que, muito embora seu mestre levasse uma vida deveras abastada, nenhum valor ele dava a tudo aquilo, nenhum apego ele tinha a qualquer de seus bens ou status. Ele, porém, apesar da aparente vida desapegada, o seu coração estava aprisionado ao mundo material.
Creio que essa história ilustra bem o que tentamos apresentar sobre a ganância, sobre o apego, o que não está ligado diretamente ao possuir, mas sim às amarras que temos geradas pelos desejos.
A ganância é, na verdade, um desejo insaciável. Se formos melhor refletir, tanto no budismo, como no cristianismo, o problema não reside no desejo, tampouco na posse. O grande problema está no apego, que seria a busca pelo aprisionamento do que se é desejado, associado ao avanço sobre o que poderia ser de outra pessoa, num pensamento centrado em si.
Não há distinção dos olhares do cristianismo, do budismo, e pelo exemplo acima, do islamismo, no que concerne ao desapego, à busca pela libertação da ganância. Todos encaram tal veneno como algo a ser trabalhado e dele ser libertado.
O segundo veneno – o ódio (raiva ou ira) –, vem sendo amplamente combatido e questionado, porém, de formas diferentes.
Há quem condena e combate o ódio utilizando o próprio ódio como arma, buscando, incessantemente e de forma infrutífera, o extermínio da ira opositora por intermédio da própria ira, desfechada em sentido contrário.
Siddhartha Gautama, o buda histórico, insistentemente dizia que não se apaga o fogo com fogo. Todos sabemos que o fogo só pode ser vencido com a aparente brandura da água ou com qualquer material que não se incendeie, ou seja, o ódio jamais será eliminado com o próprio ódio, mas sim com reações que dele não dependam para existir ou ampliar-se, e que sejam fortes o suficiente para enfrenta-lo e elimina-lo.
Quando Jesus apontou para a importância do cumprimento das Leis, não se limitou a elas e destacou que apenas o “não matarás” era muito pouco para alguém que desejava tornar-se “membro do Reino de Deus”, devendo, assim, ir muito além. Para Ele era tão importante a harmonia entre as pessoas que a colocou acima da própria devoção religiosa:
Se estás, portanto, para fazer a tua oferta diante do altar e te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; só então vem fazer a tua oferta. (Mt 5:23-24)
Mas Ele não ficou só nisso, foi mais além, e exortou todos os ouvintes, inclusive cada um de nós:
Tendes ouvido o que foi dito: Amarás o teu próximo e poderás odiar teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos [maltratam e] perseguem. (Mt 5:43-44)
Não devemos nos esquecer que o próprio Cristo Jesus destacou que o amor entre os seres era o ponto básico de seu ensinamento. Não apenas pregou o amor ao semelhante, não somente orientou que orássemos pelos nossos amigos e inimigos, mas Ele mesmo viveu tal orientação, rogando ao Pai, próximo de sua morte, pelos seus agressores, pedindo desculpas por eles, tendo em vista não saberem o que estavam fazendo.
Entretanto, para que a raiva seja amenizada, faz-se necessário o exercício do perdão. Não o perdão formal, que expressa muito mais a soberba e a condescendência de quem diz estar perdoando, mas o perdão decorrente do verdadeiro amor entre os seres, da compaixão pelo próximo. Tanto no budismo, como no cristianismo, é estimulado o perdão, o perdão sem limites, sem senões, como fruto do amor sem nada esperar em troca, do amor que se dá sem qualquer intencionalidade.
Lembremo-nos das palavras de João em sua primeira epístola:
Quem afirma estar na luz mas odeia seu irmão, continua nas trevas. Quem ama seu irmão permanece na luz, e nele não há causa de tropeço. Mas quem odeia seu irmão está nas trevas e anda nas trevas; não sabe para onde vai, porque as trevas o cegaram. (1 Jo 2:9-11)
Mais uma vez, fica evidente a concordância entre as duas tradições no que concerne ao reconhecimento da ira como um grave veneno a contaminar as relações entre os seres. Veneno esse que deve ser combatido com o mais intenso amor, amor que brota de nossa essência e não de nossa condição humana, de nosso ego. Unamo-nos com nossa essência divina e deixemos que ela conduza a difícil batalha contra a ira que corrói nosso ser e nossas relações.
O terceiro veneno, como já apontamos, é a ignorância (estupidez ou ilusão).
No budismo, a ignorância é a base de todos os problemas humanos, é a razão de todo aprisionamento do ser a este mundo e a impossibilidade de sua evolução em busca de sua iluminação. Podendo ser dito que a estupidez está ligada à “incapacidade de compreender a verdadeira natureza das circunstâncias”.
Segundo Ajaan Thanissaro, na língua Pali, a palavra para ignorância (avijja) não é apenas o oposto de “conhecimento”, mas, também, de “habilidade” (vijja), ou condição de fazer ou lidar com algo. Para ele, quando Buddha referiu-se à ignorância como a razão do sofrimento, ele foi além do desconhecimento das nobres verdades, de como identificar o sofrimento e saber como é possível sua cessação. Ele apontou, também, para a falta de habilidade em lidar com tais limitações e problemas. Pode-se dizer que a ignorância, nesse sentido, está mais ligada à ausência de sabedoria, ao invés de conhecimento.
Quando nos reportamos ao “pecado”, apontado pelo cristianismo, sua origem bíblica, aponta, dependendo da palavra utilizada, para diversos aspectos e abordagens, dependendo do autor do livro específico, tais como: falta, omissão, erro de alvo, perversão, deturpação, transgressão de uma lei, delito, impiedade, imoralidade e deslealdade para com Deus. Porém, de uma forma geral, o seu sentido principal, especialmente no conjunto dos livros neotestamentários, relaciona-se aos atos e pensamentos que levam a pessoa a afastar-se de Deus, à privar da força e da luz divina em sua vida, muito mais do que a ideia de uma falta merecedora de castigo ou punição. A perda da sustentação e da condução pelo Absoluto, não por Sua vontade, mas pelo afastamento Dele, gerado pelas ações inadequadas, já são, por si, o “castigo”, não imposto pelo Altíssimo, mas obtido pela opção da própria pessoa.
Tal visão, nada mais é do que a ignorância do indivíduo, a ilusão que, ao envolve-lo com as coisas mundanas de forma equivocada, afasta-o do caminho divinamente iluminado em direção de sua almejada salvação, ou seja, do aperfeiçoamento espiritual, de sua iluminação.
Não agiria, o ser humano, por ignorância, ao afastar-se de Deus, através de atos indevidos, especialmente aqueles relacionados com os demais seres? Não estaria faltando, mais do que o conhecimento sobre as consequências, a sabedoria para adequadamente lidar com seu cotidiano e tudo que nele se insere?
Normalmente, erramos não por desejo de cometer tais atos, mas por sermos levados pela nossa limitação humana (ignorância e ilusão), em maior ou menor grau, afastando-nos do Altíssimo, ou seja, impedindo que seu Espírito, que em nós habita, conduza nossos passos.
Quando se fala em “erro de alvo” ou “deslealdade para com Deus”, existe uma referência ao nosso afastamento do Altíssimo, ao equívoco da ação que nos leva a rompermos, mesmo que provisoriamente, com nossa própria essência divina. Ruptura essa decorrente de pura ignorância, absoluta ilusão, plena estupidez.
Qual a contradição entre o budismo e o cristianismo quando se aborda a ignorância ou a ilusão humana?
Há quem diga que no budismo não existe a dependência do ser humano à quem quer que esteja fora dele, para que avance, libertando-se dos três venenos, diferentemente do cristianismo que a pessoa está na dependência de um Deus externo que o ajude a buscar a sua libertação e salvação. Mas não é bem assim.
Crer em Deus, no cristianismo, não quer dizer permanecer estático, aguardando a força suprema agir, com vistas à transformação do mundo e de cada um de nós. Nada ocorrerá, por maior que seja a crença no Absoluto, se não nos movermos para a mudança, para nossa evolução, para nossa santificação. Ou reconhecemos as nossas limitações e a presença viva e infinita de nossa essência divina, deixando que Ela assuma nossos pensamentos e atitudes, fortalecendo-nos no caminho em direção à luz, ou nos manteremos exatamente como somos – limitados – sendo alimentados pelos venenos da ignorância, da ira e da ganância.
Fomos convocados por Cristo Jesus a sermos luz no mundo e sal da terra, ou seja, como luz, apontamos para o caminho correto e para a adequada estrada da iluminação e salvação, e como sal, oferecemos nosso exemplo de vida, no cumprimento das ações que nos aproximam da Verdade, deixando que a divina luz nos oriente e nos conduza. É a palavra complementada pelo exemplo; é a crença complementada pela ação. Um sem o outro não representa a verdadeira fé, pois fé não é apenas crença, é ação, é a resposta que damos, com atos, diante da revelação divina em nossa vida.
Quando nos deixamos ser movidos pela verdadeira luz, preenchemo-nos do amor divino e somos mobilizados por tal amor, passando a dar, ao invés de apegarmo-nos; a acolher e ajudar, ao invés de irarmo-nos; e a habilitarmo-nos no lidar com o nosso cotidiano, abandonando as ilusões que nos inebriam e nos enganam, levando-nos a viver pelas nossas limitações humanas.
Para finalizar, permitam-me citar dois trechos, um budista e outro cristão, referentes às mudanças desejadas quanto à libertação dos três venenos:
Queime a lenha dos desejos mundanos e contemple o fogo da sabedoria iluminada diante dos seus olhos. (Nitiren Daishonin)
“Cometi um pecado? A culpa é do diabo! Sofri uma injustiça? A culpa é do outro!” Esta é a atitude de muitos cristãos. Mas não são os outros que devo culpar, pois o inimigo está nas mãos de cada um; o inimigo é o egoísmo que nos faz cair. Feliz, portanto, o servo que sempre mantiver acorrentado este “inimigo” entregue em suas mãos, e estiver armado contra ele com sabedoria; desde que se comporte assim, nenhum outro inimigo, visível ou invisível, poderá fazer-lhe mal. (Papa Francisco)
Fiquem em paz!