Ira. O interior de um "pecado capital"

“Não te apresses no teu espírito a irar-te, porque a ira repousa no íntimo dos tolos.” Ecl 7; 9

A Bíblia não contém a distinção ensinada na Igreja Católica entre pecados capitais e venais. Apenas, o Senhor menciona como sem solução a Blasfêmia contra o Espírito Santo. “Portanto, eu vos digo: Todo o pecado e blasfêmia se perdoará aos homens; mas a blasfêmia contra o Espírito não será perdoada.” Mat 12; 31 João também desaconselha que se ore por alguém quando cometeu pecado mortal, possivelmente, o mesmo assunto. “Se alguém vir pecar seu irmão, pecado que não é para morte, orará, e Deus dará a vida àqueles que não pecarem para morte. Há pecado para morte, e por esse não digo que ore.” I Jo 5; 16

Salomão aconselha que não nos apressemos à ira, pois, essa repousa no íntimo dos tolos. Entretanto, ouso afirmar que a ira, sequer pecado é. O Sábio alude a um que apressa-se a ela e lhe dá repouso. Ainda assim, chama de tolo, não de pecador.

Apressar-se à ira é precipitação; dar repouso à mesma é insanidade psicológica. Como pessoas sem domínio próprio que esperam uma contrariedade qualquer para derramarem seus impropérios. Uma forma de mascarar às próprias imperfeições pintando com cores vivazes, eventuais lapsos alheios. Ademais, Paulo apresenta a ira como uma concessão, separada do pecado; “Irai-vos, e não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa ira.” Ef 4; 26 A ideia é que, circunstancialmente a ira é inevitável; o pecado não.

Aquele que tem a têmpera devida, o necessário brio, fatalmente se irará, ante uma grande injustiça, por exemplo. A questão é saber como canalizar essa força interior; se jorrar sem o anteparo de um dique racional, acabará fazendo estragos. Talvez tinha isso em mente, Paulo, ao advertir que o pecado fosse contido quando nos trilhos de nossa alma fumegar a locomotiva da ira.

Muitos usam-na de modo domesticado, quando a contrapõem ao bom senso para, de modo jocoso, extraírem a sensatez não lograda pelo caminho reflexivo; a ironia. Claro que essa ira alvejada com tranquilizante é privilégio de esclarecidos, não de tolos.

Na verdade, muitos dominam multidões, comandam exércitos, países; poucos, são fortes o bastante para o devido exercício do domínio próprio. Jesus Cristo, em face ao comércio profano no templo, apenas virou mesas, soltou animais, espalhou a tralha; um de nós, possivelmente teria baixado o açoite nos cambiadores, extrapolando a justa medida da ira; caso aquilo nos incomodasse como a Ele, claro. “Como a cidade derrubada, sem muro, assim é o homem que não pode conter o seu espírito.” Prov 25; 28

Platão ilustrou a personalidade humana como sendo um invólucro de pele contendo uma besta policéfala, ( Com várias cabeças ) e na parte superior, um pequeno homenzinho dentro. Cada cabeça dessa besta seria um mau instinto, um desejo pervertido; o homenzinho frágil, a razão. Essa desproporção de forças entre os instintos primários e a razão, corrobora o ensino de Salomão quando diz que, é mais forte o que governa o próprio espírito que outro que conquista uma cidade.

Sim, se esse pequeno “Hércules” consegue superar tal monstro, não é nada desprezível. Na verdade, o “novo nascimento” apregoado por Cristo vitaliza pelo poder do Espírito Santo a esse lúcido impotente, e o desafia a crucificar a besta.

Mas, a mensagem de salvação quase nunca é bem vinda, pois, ameaça nossos instintos animais com os quais tão acostumados estamos; como o anúncio do nascimento de Cristo pareceu ameaçar o trono de Herodes. Assim, ele canalizou sua ira rumo a Belém; no afã de remover a “concorrência” matou muitos inocentes. Afinal, quando é a besta que governa, dilui-se a noção de inocência ou culpa, nos quentes domínios dos anseios naturais. Sua ira é uma arma em repouso, prestes a despertar em defesa do instinto.

Desse habitat falava o sábio como sendo o seio dos tolos. Contrário à ira de um justo, que, normalmente desfila com discrição, só exaspera-se ante uma grande injustiça, um motivo de peso. Afinal, contemplar a afronta de direitos, o vilipêndio da honra, o escárnio da moral e dos bons valores e não se incomodar não é ter domínio próprio; antes, ser um pusilânime. Assim, aliás, agem muitos que por medo das consequências de ter uma posição firme, omitem-se, fraquejam, fingem concordar. Para esses o repouso é sua causa de busca, não consequência da justiça alcançada. Tais, ao invés de abrigar a ira como “munição” como o tolo supra, drogam-na injetando na veia, doses de hipocrisia.

Por fim, se a ira fosse pecado, não a encontraríamos em Deus; “Deus é juiz justo, um Deus que se ira todos os dias.” Sal 7; 11