“Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador.”
Parte II – A certeza da correta conduta e o desprezo pelos demais.
Parte II – A certeza da correta conduta e o desprezo pelos demais.
No tempo da pregação pública de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, Verbo de Deus vivo, que se encarnou através da santa Virgem Maria, sucedeu esta mensagem:
Naquele tempo, Jesus disse também a seguinte parábola, a respeito de alguns que confiavam muito em si mesmos, tendo-se por justos e desprezando os demais: Dois homens subiram ao templo para orar: um era fariseu e o outro, cobrador de impostos. O fariseu, de pé, fazia interiormente esta oração: “Ó Deus, dou-te graças por não ser como o resto dos homens, que são ladrões, injustos, adúlteros; nem como este cobrador de impostos. Jejuo duas vezes por semana e pago o dízimo de tudo quanto possuo.” O cobrador de impostos, mantendo-se à distância, nem sequer ousava levantar os olhos ao céu; mas batia no peito, dizendo: “Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador.” Digo-vos: Este voltou justificado para sua casa, e o outro não. Porque todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado. (Lc 18:9-14)
Queridas irmãs e queridos irmãos, que todos vocês estejam em paz!
Como já vimos na reflexão anterior, muitos refletiram no domingo passado sobre a passagem narrada por São Lucas onde Jesus apresentou a Parábola sobre os que “confiam muito em si mesmos, tendo-se por justos e desprezam os demais”, da qual participam dois orantes – o fariseu e o cobrador de impostos.
Abordamos, na primeira parte dessa reflexão, a prática orante e, hoje, trabalharemos um pouco a respeito da pretensiosa certeza da correta conduta e o desprezo pelos demais por não tê-la.
Dois atores foram apontados por Jesus em sua parábola – o fariseu e o cobrador de impostos –, os quais buscam no templo sua relação formal com Deus – a oração. Ao abordarmos a questão da oração, destacamos seu aspecto relacional com o Altíssimo, personagem, mesmo que não visível, que deve ser considerado presente na parábola em questão.
Lembremos que os fariseus, zelosos pelas tradições religiosas judaicas, gozavam de importante prestígio e influência junto ao seu povo, mesmo, em diversas ocasiões, apresentando práticas de vida não condizentes com a sua pregação religiosa e merecedores, por isso, de veementes questionamentos por parte de Jesus, a exemplo do que nos apresenta Mateus:
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente parecem formosos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda a imundice. (Mt 23:27)
Por outro lado, os publicanos, ou cobradores de impostos, eram judeus a serviço do Império Romano que ganhavam a vida cobrando de seus irmãos de raça os impostos exigidos pelos romanos e, com isso, arrecadavam para si importante soma de dinheiro. É desnecessário destacar a rejeição que eles tinham pelo seu próprio povo, por considerá-los traidores a serviço de estrangeiros e por obterem, com isso, ganhos pessoais indevidos. Tal sentimento pode ser evidenciado em diversas passagens, a exemplo do que nos apresenta Mateus: “Se amais somente os que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem assim os próprios publicanos?” (Mt 5:46). No tempo de Jesus, os publicanos, assim como os doentes, os pagãos, as prostitutas e os escravos eram vistos, igualmente, de forma marginalizada e excluídos da sociedade.
O fariseu, na parábola, orgulhosamente, de pé, dirige-se a Deus, numa forma de monólogo que muito pouco parece uma oração, e diz: Ó Deus, dou-te graças por não ser como o resto dos homens, que são ladrões, injustos, adúlteros; nem como este cobrador de impostos (...)”. Pleno de arrogância e soberba, busca muito mais a própria elevação e o reconhecimento de sua conduta como justa e exemplar.
Em momento algum, o fariseu buscou uma relação amorosa com Deus, um contato íntimo com o Criador com a intenção de usufruir dessa divina relação. Em nenhum instante viu-se como homem limitado e pecador como todos somos, almejando, tão somente, evidenciar o seu pretenso mérito de perfeição e desprezar os demais.
Diferentemente, o publicano, amplamente criticado por ser infiel à Lei e a seus irmãos e por utilizar a condenada subserviência aos pagãos romanos para extorquir seus compatriotas, posta-se de forma radicalmente diferente diante do Senhor, nem sequer ousando a levantar os olhos ao Alto, dizia, batendo no peito: “Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador.”
O cobrador de impostos reconhece em si todas as limitações de um ser humano, as dificuldades de enfrentar o cotidiano sem cometer erros e desvios, o apego às coisas mundanas, tão impregnado em cada um de nós. Reconhecendo humildemente sua condição fraca e pecadora, não se vangloria, não questiona, muito menos aponta qualquer falha no alheio, apenas se curva e roga a piedade divina. Inexiste a soberba e sobra a resignação e humildade.
Não nos parece ter sido a intenção de Jesus apontar qualquer falha humana cotidiana, as limitações que cada um de nós carrega como grilhão, pesado e de difícil enfrentamento.
A parábola traz-nos dois modelos sociais, dois ícones distintos representantes do chamado bem e mal aos olhos humanos, dois homens que, diferentemente, pelos preconceitos sociais, são vistos e julgados de forma comparativa – o fariseu, que representa a figura do bem, e o publicano simbolizando o conjunto do mal social.
Entretanto, o exterior, a imagem estereotipada, a figura que nos salta aos nossos olhos limitados, dificilmente é capaz de demonstrar o verdadeiro ser, a intimidade de cada um.
O socialmente respeitado, orgulhoso e prepotente fariseu, hipocritamente se enaltece, desrespeitosamente se lança como exemplo humano, desdenhando e criticando o seu próximo.
O cobrador de impostos sabe que não tem méritos próprios ou boas obras para apresentar, mas tem a coragem de rogar pelo Amor de Deus, mediante o perdão divino. Não intenciona justificar seus erros, tampouco acusa quem quer que seja pelo mal feito. Sente, humildemente, o peso de sua própria consciência, mas confiante pede por seu fortalecimento e por sua salvação, por intermédio do perdão do Alto.
Em diversas passagens, os evangelistas apresentam-nos a chamada “Oração do Coração”, muito conhecida e praticada pelos orientais. Uma oração que brota da alma, que emerge da essência, construída, não pela razão, mas pela radical consciência da limitação humana, associada à certeza da plenitude divina e da infinita amorosidade do criador pelas suas criaturas, que propicia uma relação sempre possível e disponível entre o divino e o humano, por intermédio do que se chama de oração. Um diálogo, nem sempre verbalizado, que busca a íntima relação entre criador e criatura, entre o humano e sua essência divina. Por isso, não é uma oração racionalizada e é chamada de oração do coração – “Senhor apiede-se de mim!” –, do grego: Kyrie Eleison (Κύριε ἐλέησον).
Não é um pedido, é uma entrega. Não se espera o mero perdão, mas sim, a re-ligação entre a humanidade de nosso ser e a divindade de nossa essência, rompida por práticas que nos afastam da origem perfeita.
Não é sem razão que, em diversas passagens bíblicas, aparece tal oração como forma de chamar a atenção de Jesus às mazelas humanas, apontadas como males físicos:
Senhor, tem piedade de meu filho, porque é lunático e sofre muito: ora cai no fogo, ora na água... (Mt 17:15)
Dois cegos, sentados à beira do caminho, ouvindo dizer que Jesus passava, começaram a gritar: Senhor, filho de Davi, tem piedade de nós! (Mt 20:30)
Ao aproximar-se Jesus de Jericó, estava um cego sentado à beira do caminho, pedindo esmolas. Ouvindo o ruído da multidão que passava, perguntou o que havia. Responderam-lhe: É Jesus de Nazaré, que passa. Ele então exclamou: Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim! Os que vinham na frente repreendiam-no rudemente para que se calasse. Mas ele gritava ainda mais forte: Filho de Davi, tem piedade de mim! (Lc 18:35-39)
Da mesma forma, também podemos encontrar oração similar em outras linhas religiosas, como, por exemplo, no Bhagavad Gita: “Tem piedade de mim, Senhor dos deuses, Coluna do Universo!” (11.25). No Alcorão, em “AL ANBIYÁ” (Os Profetas), 21ª Surata, encontramos: “Ó Senhor nosso, cremos! Perdoa-nos, pois, e tem piedade de nós, porque Tu és o melhor dos misericordiosos!” (109)
Enfim, é uma prática orante que não representa, somente, uma solicitação de piedade, um pedido de perdão a Deus. Vai muito mais além. Representa uma perfeita entrega, o reconhecimento do infinito amor divino, a crença de que, mesmo nos afastando da perfeição divina, Deus está sempre presente e “disponível” para ser “encontrado” em nosso interior e em todo universo. É o reconhecimento que o vínculo homem-Deus somente é rompido quando assim o fazemos e restabelecido com o nosso regresso.
Fica evidente que as práticas formais e o cumprimento de normas e preceitos ritualísticos, quando meramente aparentes, de nada valem diante da inexistência do amor, da plena entrega e da compaixão com o semelhante. Não uma compaixão calcada na piedade do outro, que expressa muito mais uma soberba que um verdadeiro sentimento fraterno, uma relação vertical entre os envolvidos. A compaixão iluminada é o reconhecimento da existência do divino no outro, independente de como ele se porta ou exterioriza sua essência, o mesmo divino que habita em cada um. Dessa forma, somos essencialmente iguais, radicalmente semelhantes, diferenciados somente pela aparência e pela forma de exercitar o cotidiano humano.
Descortina-nos a parábola, muito mais do que uma forma comparativa entre dois atores contemporâneos, independente de sua forma de vida, o modelo salvífico apontado por Cristo Jesus, rompendo com a tradicional mentalidade religiosa judaica, segundo a qual a salvação tinha-se convertido num cumprimento de formalidades, na execução cega, insensível e meramente legalista dos preceitos sociais e religiosos pactuados. Como se a salvação pudesse ser adquirida mediante jejuns, tributos, sacrifícios e formalidades.
Jamais esqueçamos que o amor divino e sua universal presença podem ser comparados com o brilhar do sol que irradia o céu de todos, justos e injustos, independente da cor, do gênero, do credo religioso professado, ou qualquer outra forma humana de distinção. Por ser indiscriminado, infinito, universal e essencial, o amor divino é inegociável, incondicional e gratuito, independendo do que façamos ou ofertemos.
Se mal fizermos, nós próprios seremos atingidos, estaremos limitando e atrasando nosso crescimento e desenvolvimento espiritual; se o bem fizermos, estaremos alimentando a divina essência existente em nós e aproximando-nos, cada vez mais, da verdadeira Luz.
Permitam-me a lembrança das palavras de Santo Agostinho: “A suficiência de meus méritos está em saber que meus méritos não são suficientes.”
Oremos e entreguemo-nos, para que o Deus que habita em nós possa conduzir nossa vida, iluminar nossos caminhos e guiar nossos passos.