Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador.”
Parte I – A prática orante
 
No tempo da pregação pública de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, Verbo de Deus vivo, que se encarnou através da santa Virgem Maria, sucedeu esta mensagem:

Naquele tempo, Jesus disse também a seguinte parábola, a respeito de alguns que confiavam muito em si mesmos, tendo-se por justos e desprezando os demais: Dois homens subiram ao templo para orar: um era fariseu e o outro, cobrador de impostos. O fariseu, de pé, fazia interiormente esta oração: “Ó Deus, dou-te graças por não ser como o resto dos homens, que são ladrões, injustos, adúlteros; nem como este cobrador de impostos. Jejuo duas vezes por semana e pago o dízimo de tudo quanto possuo.” O cobrador de impostos, mantendo-se à distância, nem sequer ousava levantar os olhos ao céu; mas batia no peito, dizendo: “Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador.” Digo-vos: Este voltou justificado para sua casa, e o outro não. Porque todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado. (Lc 18:9-14)

Queridas irmãs e queridos irmãos, que a divina paz seja sentida e cultivada em sua vida!

Muitos refletiram, no domingo passado, sobre a passagem narrada por São Lucas onde Jesus apresentou a todos uma Parábola “a respeito de alguns que confiavam muito em si mesmos, tendo-se por justos e desprezando os demais”, da qual participam dois orantes – o fariseu e o cobrador de impostos.

Permitam-me separar dois importantes aspectos a serem refletidos nessa passagem. O primeiro refere-se à prática orante e o segundo relaciona-se aos aspectos comparativos da postura dos atores da Parábola, ou seja, a certeza da correta conduta e o desprezo pelos demais.

A reflexão de hoje aborda o primeiro dos aspectos acima apontados, isto é, a oração.

A prática religiosa desenvolvida pela humanidade, desde as comunidades de origem mais longínqua, vem se sustentando na oração, na busca permanente do encontro com a divindade norteadora de suas ações, no desejo de se chegar ao Supremo, ao Absoluto, à Verdade, de se chegar a Deus, de se chegar à realidade última que é a nossa própria essência.

Paramahansa Yogananda, um grande líder religioso fundador da organização espiritual Self-Realization Fellowship, lembrou-nos que “perceber a presença do Morador Divino deveria ser o primeiro desejo de todos os corações.” Ensinou, ainda, o mesmo líder: “Quando, em cada ato, você pensar Nele antes, durante e depois da ação, Ele se revelará a você.” E ainda exortou seus seguidores dizendo: “Não procure Deus com segundas intenções, mas reze a Ele com devoção – devoção incondicional, exclusiva, imperturbável.

Em um dos livros sagrados para os hindus, escrito há milhares de anos, pode ser encontrada a seguinte oração (mantra): “Possamos nós meditar no Ser adorável e resplandecente que deu origem ao universo! Possa Ele dirigir nossa inteligência para a Luz!” (Gayatri Mantra, Rig-Veda)

No Islam, a oração foi a primeira das adorações instituídas por Deus. Seus seguidores acreditam que, pela importância da oração, ela foi a única prática que não foi transmitida ao Profeta Muhammad, através do arcanjo Gabriel aqui na terra, tendo ocorrido no céu e feita diretamente por Deus ao Seu último mensageiro, nos eventos conhecidos como “A viajem noturna” e “A ascensão”. No Alcorão Sagrado, a prática da oração é citada mais de 117 vezes.

Para os cristãos ortodoxos, a concepção de Igreja é baseada na origem grega da palavra (ekklesia), escolhida pelos autores da Septuaginta (a tradução grega da Bíblia Hebraica), para traduzir o termo usado entre os judeus que designava “a assembléia geral do povo do deserto”. Assim sendo, a vida da Igreja, não na lógica institucional, mas na concepção de uma assembléia unida caminhante, sustenta-se, basicamente na prática orante, revestindo-se de importância vital para sua sobrevivência. Alguns chegam a dizer que a oração é a “respiração da Igreja”, é a forma de mantê-la viva.

A fé não é apenas a crença em Deus, mas sim, como decorrência da experiência direta com Ele, ela pode ser vista como sendo a resposta que se dá à revelação divina, é experiência pessoal e ação dela decorrente. Com isso, precisamos ir além do crer, necessitamos ultrapassar os limites da crença dogmática e irmos em busca da verdadeira fé, ou seja, de nossa experiência direta e pessoal com o Inefável. Lembremo-nos das palavras de Cristo Jesus ao afirmar que a pessoa de fé, “mesmo do tamanho de um grão de mostarda” é capaz de mover montanhas.

A humanidade vem construído, ao longo dos séculos, o desenvolvimento de uma grande corrente mística espiritual crística e como exemplo podemos focar os “padres do deserto[i], que chamaram a atenção para a grande inspiração em São João Evangelista, “o discípulo amado”, em sua relação íntima e especial com Cristo Jesus, lembrando, dentre diversas passagens em que se apresenta próximo do Mestre, de quando reclinou-se sobre o peito de Jesus. Tal privilégio, tal intimidade, denota-nos uma relação íntima e amorosa que a todos nós é possível. Sem dúvida, todos nós somos “o discípulo amado”.

O que, lamentavelmente, vem ocorrendo é o redirecionamento do sentido e do objetivo dessa íntima relação. Ela passou a ser vista, pela maioria, como uma prática pontual, verbalizada, restrita a algumas pessoas, em especial àquelas que crêem no poder de seus pedidos frente às agruras do cotidiano – “Ore (peça) que Deus atenderá!”; “Concretize seus sonhos pelo poder da oração!”; “Obtenha um emprego, uma família, rendas e posses, por intermédio da oração!”, ou seja, Deus está a nossa disposição para conseguirmos o que desejarmos, tudo aquilo que venha a nos alegrar e nos enriquecer de coisas e situações deste mundo material, basta “orarmos (pedirmos) com fé”.

Essa “pedição material”, essa equivocada materialização nas relações com o divino é que vem transformando, limitando e humanizando essa relação entre o homem e o divino, vem fazendo com que, pela incompreensão desse vínculo, o ser humano passe a colocar-se no centro da relação com Deus e não o contrário. Nessa concepção, o divino existe para responder aos interesses do homem.

Lembrando as reflexões de São João Cassiano (370 - 435), um teólogo cristão, do período patrístico e um dos destacados padres do deserto, devemos estar atentos ao grande risco de transformar nossa prática orante em uma relação de queixumes e lamúrias, fazendo com que, através de nossas orações, criemos um Deus à nossa imagem e semelhança humana e o consideremos apenas como “um ombro confortável onde podemos chorar a vontade”. Segundo esse tão destacado eremita, devemos compreender a transcendência absoluta do Senhor, associada a sua total proximidade conosco, através de seu Espírito que habita em nós.

O cuidado que devemos ter na busca permanente dessa íntima relação situa-se na clareza do verdadeiro centro do processo e, lembrando as palavras de São Paulo direcionadas aos romanos: “Outrossim, o Espírito vem em auxílio à nossa fraqueza; porque não sabemos o que devemos pedir, nem orar como convém, mas o Espírito mesmo intercede por nós com gemidos inefáveis.” (Rm 8,26)

Dessa forma, tenhamos a convicção de que na prática de nossa relação com o Absoluto cabe expressarmos nossa fé e a confiança que nEle temos, até porque, Ele conhece nossos pensamentos, nossas necessidades e possibilidades e não precisamos direcionarmo-nos ao Senhor para informá-lo ou lembrá-lo sobre que Ele deverá fazer sobre nossa vida ou a de quem intercedemos. Assim sendo, ao orarmos por nossas necessidades ou por aquelas de quem intercedermos devemos estar seguros e confiantes na onisciência de Deus. Buscamos, com isso, aproximarmo-nos Dele e entregarmo-nos a Ele através da oração, tendo a certeza de que nossa prática, assim como toda nossa vida, deve ser uma oração de fé.

Padre Domingos Cunha, membro da Comunidade Shalom, em um dos seus livros sobre meditação cristã, conta-nos um episódio ocorrido entre um jovem ávido por aprender a verdadeira prática da oração e o abade do mosteiro onde se encontrava. O jovem, após acompanhar fielmente seu mestre, por um determinado tempo, perguntou-lhe se, ao repetir as orações, tal e qual o abade fazia, Deus ficaria mais próximo dele. O abade, paciente e experiente, respondeu com a seguinte pergunta: “Se você passar a noite rezando para que o sol nasça de manhã, é por causa da sua oração que o sol vai nascer?” Ao perceber a tristeza do jovem decorrente do emaranhado que se envolveu, acreditando que de nada adiantaria rezar, o mestre, compassivamente, explicou-lhe: “Apenas quero dizer que o sol nasce pela manhã, quer você reze, quer você deixe de rezar para que isso aconteça. Mas, se você não acordar cedo para ver o sol nascer, ele nasce e você nem percebe!

Essa rica imagem, faz-nos lembrar de que Deus está vivo e sempre presente em cada um de nós, mas se não “acordarmos” para sua presença não o perceberemos, deixaremos de contemplá-Lo e de nos comunicarmos com Ele.

A tradição oriental mostra-nos a importância de uma relação pessoal, real, autêntica, viva com o divino. É uma real e cotidiana experiência e não somente um fato exterior e pontual. A própria prática de oração, quer seja ela verbal, meditativa ou contemplativa representa “a elevação da mente e do coração a Deus”, ou seja, é um diálogo que vai além do pensar, do questionar, do refletir, é uma ligação íntima de coração a coração com o próprio Absoluto, fazendo com que o homem descubra a si próprio, como verdadeira imagem de Deus.

Uma das santas cristãs que viveu no século XIX, agraciou-nos com uma belíssima imagem quando comentava sobre suas orações. Ela dizia que imaginava-se em um horto, no qual recebia a presença viva de Cristo Jesus e que precisava manter tal local da forma mais linda e agradável para receber seu amado mestre. Esse horto era seu coração, seu ser que, em oração, transformava-se em um local de verdadeiro encontro com Jesus.

Dessa forma, a chamada vida orante, vida contemplativa ou vida meditativa, significa, acima de tudo, uma vida de encontro e convivência permanentes com Deus. Representa a atenção à presença pessoal de Deus em nós, chegando ao ponto de, sem distração, permanecermos em paz com Ele, saboreando, plenamente, a maravilha de nossa essência divina. Já foi dito que estar na presença de Deus é deixar-se tornar na pessoa que ele chama a ser, não por pensar Nele, não por pedir a Ele, mas por estar com Ele. Assim sendo, praticar a verdadeira oração não significa, necessariamente, “fazermos” algo, não é apenas uma ação, mas sim, a busca de nos tornarmos naquele que originalmente fomos criados, tornarmo-nos naquele que corresponde a verdadeira essência divina que originou cada ser – “Sede bendito por me haverdes feito de modo tão maravilhoso. (Sl 138,14)

Pelo exposto, é possível e fundamental que conheçamos e compreendamos, verdadeiramente, o Deus vivo que habita em nós. E, por outro lado, sem a oração, qualquer que seja a sua forma, certamente, perdemos o verdadeiro rumo de nossa vida, permanecendo, somente em nosso “coração” o vazio, a solidão e angústia.

Já nos foi lembrado por um monge beneditino o que os Antigos Padres chamavam de “pureza de coração”:

O esplendor da oração consiste em que, na atenção desinteressada, entramos na plena bondade de Deus, e nós mesmos nos tornamos bons; não através de um esforço platônico qualquer, mas simplesmente porque ingressamos na luminosidade da órbita de sua bondade. Essa é a base essencial de toda moralidade - não que tentemos imitar a Deus, mas que participemos na bondade de Deus.

Por isso, não precisamos gritar, não precisamos nos desesperar para sermos ouvidos e muito menos para “ouvirmos” as respostas de Deus. Precisamos, apenas, sentir a presença divina em nosso ser e deixarmos que essa força conduza nossa vida.
Essa íntima relação não é privilégio de padres ou monges, pois ela deve, de fato, ser vivida na vida comum e cotidiana, desde que a pessoa esteja almejando a plenitude do seu ser, buscando o verdadeiro encontro com Deus.

Não podemos cair no equívoco que alguns religiosos outrora cometeram de acreditar que a busca pela intimidade com o divino acabava se opondo ou conflitando com o trabalho ou com as demais atividades da vida. Não foi por acaso que Santo Agostinho defendeu a necessidade do trabalho manual e estabeleceu em sua Regra o “Trabalho dos Monges”, cuja atividade laboral combinava com a vida contemplativa.
Para Santo Agostinho, o “orar sem cessar”, exortado por São Paulo, está muito mais ligado à oração interior, ao desejo contínuo do amor, ao desejo permanente de estar com Deus e a Ele louvar, chegando a dizer:

“[...] o frio da caridade é o silêncio do coração; o ardor da caridade é o desejo do coração. Se a caridade sempre permanece, sempre clamas. [...] O desejo do coração é uma oração constante. Se tens incessante desejo de Deus, então oras também incessantemente. [...] Orai sem interrupção significa simplesmente: desejai sempre, sem cansaços, receber do Único que a pode dar, a vida feliz, quer dizer, a vida eterna. Se a desejamos sempre de Deus nosso Senhor, não cessaremos nunca de orar”.

Por tudo exposto, podemos afirmar que a única forma verdadeira de encontrarmos a paz e a serenidade é, acima de tudo, através do “dialogar de coração a coração com o próprio Deus”.

Que todos e todas sejam iluminados pela divina luz!
 

[i] Os “padres do deserto” eram homens (aos quais juntaram-se, depois, algumas mulheres) que abandonaram tudo para se instalarem em grutas e montanhas no deserto, almejando o desenvolvimento de uma espiritualidade prática, basicamente por intermédio da oração. Somente no século XIII, seus ensinamentos (regras e sistemas transmitidos de mestre a discípulo) é que começaram a ser escritos.
Milton Menezes
Enviado por Milton Menezes em 28/10/2013
Código do texto: T4545546
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