O DIA DO ENCONTRO

Quase meio dia. Se fosse há um mês, a temperatura estaria de rachar. Mas hoje, dezoito de novembro, o tempo nublado ajuda a manter fresca aquela sexta-feira. Sorte de Daniel, que após almoçar descansa no gramado debaixo de uma árvore não tão grande, mas capaz de prover sombra generosa caso o sol resolva aparecer entre as nuvens e intensificar o calor. A única preocupação do rapaz é que se vier chuva, o serviço vai atrasar. "Pelo tamanho que tá o mato, a dona Maria tinha que tê mandado capiná em setembro. Tempo de seca, mato pequeno...". Tentou convencê-la a cimentar o quintal, mas ela gostava era de ter um pedaço de terra no fundo de casa. "Bom... deix'ela. Se continuá me chamando pra fazê a limpeza, tá bom". Daniel era um mulato de vinte e quatro anos, de um metro e setenta e bem magro, mas trabalhava para dois. Só tirava o boné em raras situações, como quando toma banho e na situação de agora, em que está deitado.

Enquanto o sono não vem, o rapaz observa melhor os detalhes das proximidades daquele bairro. O lugar em que ele repousa faz parte da pracinha da COHAB. O chão não é de cimento. Apesar de extenso, o lugar é todo gramado, tornando o lugar mais confortável para o descanso, mais fresco nos dias de calor e mais seguro para as brincadeiras das crianças. Daniel, a propósito, estranhava a ausência de crianças naquele lugar. Se fosse ao menos dez anos mais novo e morasse ali, certamente estaria descalço, trajando short e com bola debaixo do braço, brincando ali por horas. Existia um campinho improvisado no meio da praça. "A molecada deve ter ficado com medo de pegar chuva", deduziu, enquanto sorria, aprovando aquela ideia das traves de bambu improvisadas no espaço. Elas separam as mesinhas de cimento do playground feito de rústicas peças escuras de madeira. Bonitas peças. "Se fosse no Santo Antônio, campinho tava cheio! Molecada lá joga de qualquer jeito que for, não tem tempo ruim. Na terra, no asfalto mesmo, com sol rachando...". O nome do bairro que o rapaz mora é este: Jardim Santo Antônio. "Se um dia eu vim morá pra cá, vô trazê o Luquinha todo sábado pra brincar aqui", perseverou. Ele já era casado e pai de um garoto de três anos. Morava nos fundos da casa dos pais. O que era para ser provisório já se estendia por um ano. Assim que conseguisse um emprego fixo, se mudaria, prometeu ao pai.

Observou a enxada já suja recostada à arvore e examinou o bolso direito por cima da calça, para certificar-se de que não havia esquecido o pedaço de lima em cima de qualquer lugar. Sim, estava no bolso. Deitado, encostando a cabeça na mochila, olhou para a direção dos pés, que descansavam do desconforto do sapatão. Naquela direção, lá adiante, havia estrada. O quarteirão em que trabalhava era um dos últimos antes da cidade terminar para dar espaço ao asfalto da rodovia. Caminhões passavam a todo momento. Carros e ônibus também, mas o número de caminhões era várias vezes maior. A distância até a estrada permitia que os sons dos veículos pudessem ser escutados com clareza, a ponto de serem identificados, sem que o volume chegasse a incomodar. Pelo contrário, gostava daquele barulho. À esquerda, há poucos metros antes da estrada, o rapaz viu uma uma fileira de grandes árvores. A sombra, consequentemente, era enorme: cobria um trecho do asfalto da rua, o gramado que a separava da estrada e também a calçada. Um ônibus amarelo estava estacionado debaixo de uma daquelas árvores. Daniel não gostava da cor amarela, mas achou o ônibus bonito., pois o tom da cor era escuro, como o das placas de sinalização. "Será que funciona?", pensou, lembrando daqueles ônibus escolares que via com frequência em filmes americanos. À direita do trecho da estrada, o rapaz avistou uma passarela. Logo no fim da praça, bastava mais alguns passos para chegar à rampa de acesso da grande ponte de pedestres. Era possível ler a placa de identificação: "passarela Ângelo Penariol". Daniel escutou o som de alguém chegando de bicicleta. Em seguida, escutou voz familiar.

- Uai rapaz, que que cê tá fazendo perdido pra cá? - Daniel virou para a esquerda e reconheceu Leandro, com quem já havia trabalhado em uma famosa cerâmica da cidade. Apesar da preguiça pós-almoço, levantou-se para cumprimentá-lo, apertando a mão do companheiro.

- Cê tá bom? Então... tô fazendo bico pra cá. Cê mora aqui?

- Moro na rua de lá. Pertinho. - disse Leandro, apontando o quarteirão em frente a praça.

- Tô fazendo um serviço ali pra dona Maria, que mora na esquina. Conhece?

- Ôpa! A tia é mó gente boa. Legal que cê tá trabalhando pra ela.

- Então rapaz... vim aí dá uma limpada no quintal. Tô parado faz um mês, tem que garantir o leite do moleque né? Tá osso...

- Cara, tô atrasado pro trampo - diz Leandro, após consultar o relógio e já se preparando pra voltar a pedalar. Daniel reparou que o amigo usava jaleco azul, uniforme de uma firma situada ali perto.

- Cê tá trabalhando na Arca?

- Tô sim. Que hora cê para?

- Ah, lá prumas seis e meia, quinze pras sete... aproveitar horário de verão, né?

- Tá certinho. Ou, essa hora eu já tô em casa. Dá uma passada lá pra nóis trocá uma ideia.

- Passo sim. Cê mora em qual casa?

- Ó, bem aqui atrás do bar. Minha casa é verde clara, o muro também. Tem portão azul de correr, número 57. Facinho de achar. Passa lá, Dani. Aí nóis toma uma breja.

- Não tô bebendo mais. Tõ indo na igreja agora...

- Num faz mal. Tem guaraná tamém - Leandro começa a pedalar - passa lá, hein?

- Passo sim. Falô - Daniel faz sinal de positivo. O amigo se distancia e ele volta à sombra embaixo da árvore.

Daniel não via Leandro há cinco meses, desde quando trabalharam juntos. O encontro era a chance para colocar a conversa em dia. Aproveitaria também para perguntar ao amigo se há vagas de emprego na firma em que agora ele trabalhava. Na semana seguinte, provavelmente segunda bem cedo, iria ao bairro São Roque visitar uma fábrica de peças de bicicleta. Há quinze dias havia conversado com o dono. Este informou que em breve precisaria de mais funcionários, em função do aumento de produção do fim de ano. Ao se lembrar que o amigo ofereceria refrigerante, Daniel salivou. Olhou para a esquerda e viu que o bar na calçada oposta ainda estava fechado. Torcia para que o dono voltasse logo, para poder comprar uma tubaína. O sono estava chegando. O rapaz piscava com maior frequência. Pegou o boné que estava ao lado e cobriu o rosto, para diminuir a claridade.

Do outro lado da praça havia uma funilaria. Barracão de médio porte, rampa de manutenção para automóveis instalada logo ao lado, vários pára-choques usados postos na vertical, escorados na parede da fachada. Gilmar, o proprietário estava na calçada. Era um rapaz de trinta e cinco anos, cento e trinta quilos, um e oitenta, branco, cabelo castanho claro, olhos azuis. Parecia um bebê gigante. Varria migalhas de dentro do estabelecimento enquanto dava bronca no funcionário por ter comido pão ali. Pedro, o funcionário, garoto de dezesseis anos, trabalhava com martelinho debaixo de um dos carros.

- Pedrinho, cê tem que prestá mais atenção. Já pedi pra não comê pão aí dentro!

- Foi mal, Gil.

- Quando é assim, vai lá na mesa do canto e come lá. Senão vira essa lambança.

- Pó'dexá. Próxima vez vô na mesa.

- Ou... e o Parmêra amanhã?

- Acho que vai tá a mêma bosta.

- Eu acho que vai tá pior hein? Sem Denoni, sem Wesley, sem Henrique...

- Vixi... jogo passado foi triste. Quero nem vê.

- Dexa o Zeca passá aqui. Vô dá febre nele até falá chega. Ele que vem falá do Coríntia agora.

- Ah, mano, mas dá uma zoada no cara antes do Coríntia pegá o Chélsia - Pedro ri - Eles vão perdê! Bagulho ficô embaçado pr'eles. Fala aí.

No momento em que Pedro deixa de usar o martelo, nota algo estranho. "Uai, Gilmar... que barulho esquisito é esse?". Silêncio. Pedro chama mais alto: "Gilmar!". O garoto sai de baixo do carro e percebe que o patrão não está mais ali.

Daniel está quase dormindo. Escutou o som de vozes. Eram mais de duas. Parecia uma turma. Dois sons, emitidos com a mesma intensidade do côro de uma torcida organizada. Duas sílabas. Daniel procura escutar com atenção, para entender o que é falado. "Dim, dom". "Dim, dom". Força na voz, como nos protestos feitos na rua. "Dim, dom". O rapaz retira o boné do rosto e procura de onde vem o ruído. Vê um grupo de jovens na esquina da funilaria, andando em direção à praça. Eles vestem camiseta vermelha, todos. Braços esquerdos levantados, punhos fechados. Soco para cima. Ele consegue escutar melhor. Na verdade, o som é outro. "Djim, djôm". "Djim, djôm". Ele se levanta e senta-se para o lado do grupo, para observar melhor. "Que que é isso, gente...", exclama o rapaz. Há símbolos na parte da frente das camisetas: à esquerda, um martelo. À direita, uma foice. Isto faz Daniel lembrar da bandeira de um país cuja seleção jogou contra o Brasil em jogo recente de Copa do Mundo. Mas havia uma diferença. Entre os dois símbolos, havia um outro, no centro: uma cruz. As figuras eram todas desenhadas com tinta branca.

Aquelas pessoas chegaram ao centro da praça, entre as traves, e formaram um círculo, do mesmo jeito que as crianças fazem quando brincam de cirandinha. Pelas contas de Daniel, há pelo menos quinze pessoas, quase todos negros. Uns quatro ou cinco de pele mais escura, o restante de tom pardo. Havia três brancos no grupo. Eram jovens, vinte e poucos anos. Por último, chegou um homem branco, de cabelo preto bem penteado. Vestia terno branco e usava óculos escuros. Daniel lembrou da imagem do Zé Pelintra que sua avó tinha em casa. O terno daquele homem era bem parecido. Aparentava quarenta anos e carregava uma escada, daquelas comuns, de alumínio, com cinco degraus. Pôs a escada no chão, foi até o centro e falou com os jovens. O baixo volume em que conversava não permitia que Daniel entendesse suas palavras.

Ele percebeu um rapaz sentado em um dos bancos dos conjuntos das mesinhas de cimento, do lado direito do campo. Era Gilmar, o funileiro. Daniel voltou os olhos ao grupo e conseguiu ler a parte das costas da camiseta de um dos jovens: "Novo Templo dos Povos". O homem do centro levantou a mão direita, fechou o punho. Os demais fizeram o mesmo. Baixaram os braços e as palavras ditas por eles em seguida foram reconhecidas de imediato: rezavam o Pai-Nosso. A cada cinco frases da oração, estendiam o braço direito, fechavam os punhos.

Finda a oração, desfizeram o círculo e formaram fila única. O homem de branco se posicionou à frente com uma sacolinha branca, daquelas de supermercado. Tirou um pacote de copos brancos, descartáveis, de 200 ou 300 ml e uma garrafa pet de coca-cola. Ao destampar a garrafa, não houve barulho do gás, percebeu Daniel. Não era refrigerante, portanto, mas outro líquido, de coloração escura. A bebida era distribuída para um por vez, na fila. O primeiro bebeu, ergueu o braço esquerdo, fechou o punho e voltou a entoar as sílabas do início. Daniel percebeu mais uma mudança no som. "Djim, djôns". Letra esse no final do segundo termo, seja lá o que aquilo significava. Quando o homem de branco entregou o copo ao sexto da fila, disse ao primeiro: "Vai! Pode ir!".

O jovem da dianteira caminhou rumo à estrada. Os outros, após beberem o líquido, seguiram-no, estendendo os braços e gritando. "Djim, djôns". As vozes se juntaram novamente. Caminhavam em passos lentos. Daniel percebeu que quando chegaram ao fim da praça, ao invés de seguir para a rodovia, caminharam rumo à passarela. Após oferecer da bebida para o último da fila, o homem de branco jogou a sacola no chão, recolheu a escada e apressou-se para chegar na frente dos jovens. Gilmar acompanhou-os. Quando viu Daniel observando tudo de longe, lá debaixo da árvore, o funileiro acenou para ele. E gritou no mesmo ritmo do grupo. Mas dizia outra coisa: "Santos! Santos!". Um rapaz passou de bicicleta na rua do bar, perto de onde Daniel estava. Gilmar também o viu e reconheceu, era seu vizinho. Gritou mais alto, para que ele também escutasse: "viva o peixe!". O rapaz que pedalava desequilibrou-se e por pouco não bateu a roda na sarjeta, tamanha a surpresa daquela visão.

O homem de branco, carregando a escada, subiu a rampa primeiro. O grupo, ao passar pela rampa, atirou para o lado objetos retangulares, alguns do tamanho de barras de chocolate de trezentas gramas, outros do tamanho de cadernos universitários. Uns cinza, outros pretos, outros ainda brancos. Os objetos caíram no gramado que separa a última rua da rodovia. Tendo o grupo se distanciado, Daniel correu até o meio da praça e examinou o interior da sacola que estava no chão. A garrafa estava quase vazia. A coloração e o odor não deixaram dúvida: era suco artificial sabor uva. Havia também três caixas de medicamento. "Frontal", leu. Tarja preta, comprimidos de 0.5 mg. Cartelas vazias. Daniel olhou para o grupo. O grito não cessava. "Djim, djôns. Djim, djôns". Gilmar os acompanhou até próximo da rampa e parou. Virou-se para trás e viu Daniel no meio da praça gritar: "que que esse povo tá fazendo?". Gilmar disse: "é grupo de teatro!". Daniel riu. Lembrou do dia em que o pai escutou a irmã mais nova dizer que queria participar de um grupo de teatro da cidade. Proibiu-a, dizendo que "esse povo que faz teatro é tudo louco".

O homem de branco parou no limite entre a rampa e a passarela, abriu a escada, segurando-a firme. Os jovens escalaram, um a um, os degraus, rumo ao teto da passarela. Uma jovem não subiu. Hesitou. O homem de branco conversou com ela. "Moça, moça, moça, moça, moça, por favor! Lembre-se da promessa!". Mesmo de longe, era possível perceber que ela tremia. Começou a chorar. O líder do grupo tocou-a no ombro e falou-lhe no ouvido. Ela consentiu e subiu os degraus. Eles se locomoviam lá em cima, uns andando, outros engatinhando. "Rápido, rápido, rápido, rápido, rápido, rápido, rápido, rápido, rápido, rápido", ordenava. Os gritos do grupo haviam cessado. Agora concentravam-se para andar sem perder o equilíbrio no alto da passarela. Daniel e Gilmar continuavam nos mesmos lugares. Observavam em silêncio, respirando vagarosamente, sem saber sequer o que pensar. Com exceção do homem de branco, o grupo todo estava lá em cima. Viraram para o lado esquerdo da estrada. Olharam para o céu e puseram as mãos para cima, de palmas abertas, como se fossem amparar um objeto em queda. Voltaram a gritar. "Djim, djôns. Djim, djôns. Djim, djôns". No minuto seguinte deram as mãos e iniciaram contagem. Falaram todos juntos. "Um". "Dois". "Três". Soltaram as mãos e mergulharam no asfalto. Fizeram movimento idêntico ao de alguém que salta de um trampolim. Mantiveram os braços firmes ao corpo e atingiram o chão com a cabeça. Segundos depois, escuta-se o barulho infernal dos pneus de um ônibus que tentou frear. Passou por cima de alguns dos jovens. O homem de branco, ainda na passarela, sacou uma pistola, pôs o cano na boca e atirou.

Gilmar ajoelhou-se. Pôs as mãos no chão e começou a gritar. Em seguida, chorou. Daniel correu para a pista. Queria arrastar os jovens que não tinham sido atropelados. Ao ver corpos dilacerados, vomitou no asfalto. Ao se recompor, saltou o canteiro, alcançou a pista oposta e arrastou os jovens não atropelados para o acostamento. Um Fiat Uno parou próximo dali e Daniel pediu socorro. Três rapazes vieram ajudá-lo. Pescoços quebrados. Crânios afundados. Rostos desfigurados. Daniel reconheceu um dos jovens. Jogaram bola várias vezes nos campeonatos de Primeiro de Maio. Este foi o último a ser removido. Gilmar continuava a chorar. Não conseguia mover um dedo.

Minutos depois, o local estava repleto de curiosos. Uma multidão disputava espaço para tentar saber o que aconteceu. Um deles, garoto de quinze anos, descobriu os objetos jogados no gramado ao lado da rampa de acesso. Eram celulares e notebooks, alguns deles ainda ligados. Recolheu um do chão. A tela era do Facebook e continha a seguinte mensagem, do dia anterior: "Amanhã, pontualmente às 12h30 será o grande momento! Trinta e três anos depois, finalmente vamos nos encontrar com o mestre. Não devemos esquecer da promessa! Nosso senhor Jim Jones aguarda no céu a nossa chegada!"