QUARESMA


“Senhor e Mestre de minha vida,
afasta de mim o espírito de preguiça,
de abatimento, de domínio, de loquacidade,
e concede a mim, teu servo, um espírito de integridade,
de humildade, de paciência e de amor.
Sim, Senhor e Rei,
concede ver meus pecados e não julgar meus irmãos
porque és bendito pelos séculos dos séculos. Amém.”

(Oração da Quaresma de Santo Efrén)
 

Na Sagrada Escritura, encontramos em sua numerologia, importante destaque ao número quarenta: quarenta dias do dilúvio, quarenta anos de peregrinação do povo de Israel pelo deserto, quarenta dias que Moisés permaneceu na montanha, quatrocentos anos de duração do exílio dos judeus no Egito, quarenta dias que Jesus passou no deserto antes de sua vida pública, quarenta dias entre a ressurreição e a ascensão de Jesus.
Simbolicamente, o número quatro representa, na Bíblia, a terra, o mundo, o universo material, e seguido de zero(s) passa, então, a significar o tempo de vida na terra, com provações e dificuldades, passando por testes e preparação. Pode-se dizer que o número quarenta representa o “número de provação ou julgamento”.

O tempo quaresmal tem a duração de quarenta dias, iniciando-se na Quarta-feira de Cinzas e findando no Domingo de Ramos.

A prática da Quaresma, que teve seu início no século IV, vem correspondendo a um tempo de penitência e de renovação para toda a Igreja de Cristo, incluindo a prática do jejum e da abstinência, observando um espírito penitencial e de conversão. As Igrejas do oriente vem conservando tal prática e seu princípio com bastante vigor, porém, vem sendo bastante amenizada no ocidente.

Segundo os Santos Padres da Igreja, a Quaresma é “um período de renovação espiritual, de vida cristã mais intensa e de destruição do pecado”, com vistas a uma ressurreição espiritual, cunhando na Páscoa o reinício de uma vida nova em Cristo ressuscitado.

A Quaresma, tempo de escuta da Palavra de Deus, de conversão e de reconciliação com os irmãos e com Deus, é o tempo de preparação para o mistério pascal. É o tempo de arrependimento das faltas e de mudança interior, com vistas a um convívio mais próximo com Cristo vivo. No decorrer deste tempo, devemos recuperar o ritmo e o estilo dos verdadeiros cristãos, aproveitando para intensificar o caminho de nossa conversão, cooperando com a graça santificante, para dar morte ao homem velho que nos habita.

Nesse período, somos convidados a mudar de vida, a escutar a Palavra de Deus, orando, compartilhando com o próximo e praticando boas obras, objetivando seguir os passos de Cristo Jesus. Por essa razão, a Quaresma é vista como o tempo de perdão e de reconciliação fraterna, arrancando o ódio, a inveja e o rancor de nosso coração.

Assim sendo, apesar da Quaresma ser um tempo penitencial, pelo seu caráter reconciliador, não deve ser visto como um tempo de tristeza, pelo contrário, trata-se de um tempo especial de renovação da vida cristã para podermos participar com maior plenitude do mistério pascal do Senhor.
Dessa forma, com toda a importância da Quaresma, não podemos perder de vista a importância maior para a gloriosa Páscoa do Senhor, objetivo principal da preparação quaresmal. Tomando emprestado as palavras do Padre Alexander Schmemann, “a Quaresma é uma viagem para a Páscoa”.

O período quaresmal como preparação para a Páscoa leva-nos a fixarmo-nos em dois importantes pilares: a contemplação da Páscoa de Jesus e a nossa participação pessoal na Páscoa do Senhor, ou seja, devemos, com Ele, associarmo-nos à sua Páscoa. Para tanto, é imprescindível que participemos do mistério de sua morte e ressurreição, que, com Ele, vivamos seu calvário e sua morte, para que possamos, também com Ele, ressuscitarmos gloriosamente para a vida eterna, crucificando nosso eu egoísta e mundano, para que renasçamos com o próprio Cristo ressuscitado.

Lembremo-nos do sacramento do Batismo que significa a morte para o pecado e a ressurreição com o Senhor. Da mesma forma, a Quaresma procura a morte para a vida, a morte para o pecado, e a ressurreição com Cristo para a verdadeira vida.

Caríssimos irmãos, apenas o desejo de mudança não é o suficiente para que, de fato, morramos para tudo aquilo que nos impede de nos aproximarmos, verdadeiramente, de Cristo Jesus. Precisamos agir!

Arrependamo-nos de nossas faltas, cometidas por ações e omissões, as quais representam uma intransponível barreira para nosso contato direto com Deus. Não um arrependimento piegas, pueril ou superficial, que serve apenas para aparentar um desejo de reconciliação. O verdadeiro arrependimento nasce da necessidade que temos de estarmos pertos de Cristo, de tê-Lo presente em nossa vida, em nosso cotidiano, não em alguns “momentos santificados”. De que vale, ajoelhados, verbalizarmos “minha culpar, minha culpa!”, se tais palavras não nasceram da dor sentida pela separação com Jesus? A saudade de um ente amado faz com que busquemos nossa aproximação com ele, removendo os obstáculos que nos impedem de fazê-lo. Essa deve ser a verdadeira razão do arrependimento. O desejo de removermos os obstáculos que impedem nossa convivência mais próxima com Cristo Jesus.

Esses obstáculos nascem de nossa ruptura com Deus, na falta de amor verdadeiro para com Ele, pois estamos mais apegados às coisas materiais, fazendo delas nosso deus cotidiano, cumprindo, na aparente busca do Senhor, apenas com ritos externos e formais, buscando-O, somente, nas necessidades.

Nascem, também, de nossa ruptura com nós mesmos, sendo soberbos, vaidosos e arrogantes, colocando-nos superior aos outros e aparentando algo que não somos, para sermos aceitos e valorizados, entregando-nos aos vícios, a preguiça, a avareza, a gula, a bebida, a droga e a luxúria.
Igualmente nasce da ruptura com nossos irmãos, com o desamor, a falta de respeito, a inveja, a indiferença para com o próximo e deles abusando, usando-os, egoisticamente, para alcançar nossos interesses pessoais. Ocorre, também, com a falta de perdão e o cultivo do rancor e do desejo de vingança.

Porém, o arrependimento e a remoção dos obstáculos que nos separam de Nosso Senhor não devem ser um ato isolado, pontual e momentâneo. Certamente, por nossas limitações e pelo mundo “atrativo” em que vivemos, pouco tempo depois da tentativa de reaproximação, estaremos convivendo com os mesmos obstáculos outrora retirados, deixando-nos tão ou mais distantes daquele que nos garante a verdadeira felicidade. Para tanto, precisamos de mudanças, verdadeiras mudanças, que redirecionem nossa caminhada, que nos mudem de estrada, que nos mantenham em direção firme e segura ao Pai.

Como nos alertou o próprio Jesus, por intermédio de sua fala aos seus discípulos: “Guardai-vos do fermento dos fariseus e de Herodes!”, ou seja, evitai tudo aquilo que possa fermentar e produzir o mal – a inveja, o egoísmo, a arrogância, o ódio e o apego aos prazeres mundanos.

Porém, não nos esqueçamos de que tal prática representa uma luta diária, uma luta permanente. Apesar de possuirmos a essência divina, que nos faz ser a imagem e semelhança de Deus, temos nossa característica humana, limitada, frágil e tendenciosa para o mal. É uma guerra interna constante, requerendo esforço e perseverança diuturnos.

Sacrifícios freqüentes sempre nos auxiliam. Não estou falando daquele sacrifício mortificador, causador de sofrimento físico ou emocional. Falo do verdadeiro e genuíno sacrifício, cuja origem vem do latim sacrum-facere e corresponde ao “fazer sagrado”, ou seja, são ações oferecidas a Deus, por amor a Ele e pela necessidade que temos de estarmos com Ele. Dessa forma, na existe o sofrimento ou a dor em tais ações, mas sim a grande satisfação de uma necessária reaproximação.

Assim sendo, o sacrifício representa atos que não o faríamos se não fosse pelo amor de Deus, tais como a aproximação de pessoas que não simpatizamos, a realização de ações em beneficio de irmãos desconhecidos, ações que rompem nosso conforto diário e nossa inércia em busca do próximo, enfim, são práticas que nos movem a identificarmos no outro o próprio Cristo, independente de quem seja. Sem dúvida, existem diversas coisas que sabemos ser importantes e valiosas, mas nos dão trabalho e algum incômodo. Ofereçamos tais atitudes a Deus como sacrifício, por amor, não por auto-flagelação.

Está indicada, também, a prática da abstinência, nesse período preparatório. Somente a entrega a Deus da prática de se abster de prazeres rotineiros tem pouca valia, ou nenhuma, se tal prática não representar mudanças, não representar ganhos em nossa caminhada à santificação. Apenas o sacrifício, por si só, foi refutado pelo próprio Jesus.

Não nos esqueçamos do que foi dito pelo profeta, como instrumento do Senhor:

Por acaso não consiste nisso o jejum que escolhi: em romper os grilhões da iniqüidade, em soltar as ataduras do jugo e pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar todo o jugo? Não consiste em repartir o teu pão com o faminto, em recolheres em tua casa os pobres e desabrigados, em vestires aquele que vês nu e em não te esconderes daquele que é tua carne?” (Is 58,6-7).

Esta é a abstinência que Deus aprova: “um jejum realizado no amor ao próximo e impregnado de bondade”. O que vier a retirar de si, doe aos outros tais coisas, pois, dessa forma, a tua penitência lhe permitirá cuidar do bem-estar físico do seu próximo em necessidade.

Não nos esqueçamos, entretanto, que vida em Cristo é vida em oração, é intimidade de convivência com Deus. Nem Jesus abriu mão da vida em oração. Por inúmeras vezes encontramos nas Sagradas Escrituras o seu recolhimento para a oração. Da mesma forma que nos alimentamos para nutrir nosso corpo, precisamos orar para nutrir nosso espírito. A oração é um precioso e imprescindível alimento espiritual.

Normalmente, lembramo-nos da oração quando sentimos a necessidade que temos de Deus em nossa vida, frente a algum sofrimento. Orar é conversar, é conviver, é sentir o divino presente e atuante, é um diálogo íntimo com o Senhor, deixando que a graça divina penetre em nosso coração. Orar é, acima de tudo, entregar, entregar os pensamentos, os desejos, as necessidades, as alegrias e as tristezas, é entregar a própria vida a Deus, para que não mais vivamos por nós mesmos, mas para possibilitar que Cristo seja o verdadeiro vivente por intermédio de nosso corpo. (“Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim.” Gl 2,20)

O principal objetivo da Quaresma já na Igreja primitiva, era preparar os catecúmenos (cristãos recém-convertidos) ao batismo, época em que o batismo era ministrado durante a liturgia pascal. Mesmo depois, quando o batismo passou a ser ministrado mais freqüentemente em crianças, com o gradativo desaparecimento da instituição do catecumenato, o sentido da Quaresma manteve-se o mesmo, haja vista a separação que estabelecemos com Deus, pelas nossas ações rotineiras, é, precisamente, a perda do que recebemos no batismo. É por isso que a Páscoa é vista como o retorno anual a nosso próprio batismo e, por sua vez, a Quaresma é a preparação para este retorno, ou seja, o grande esforço para, finalmente, realizarmos nossa própria “passagem” ou “Páscoa” para a nova vida em Cristo.

Sem dúvida alguma que a Quaresma não é o único momento para que busquemos, fervorosamente, nossa reaproximação com Deus. Ela representa um período de preparação, mas, também, de lembrança para essa missão que devemos abraçar diariamente.

Os quarenta dias da Quaresma, como preparação para páscoa, compara-se aos quarenta anos de caminhada pelo deserto do povo judeu para a sua chegada na terra prometida, com os quarenta dias de reclusão desértica de Jesus antes de iniciar sua vida pública, representa toda nossa vida como preparação para nosso encontro com Deus após nossa partida final.

Vivamos a Quaresma para nos prepararmos para a gloriosa Páscoa de Jesus e com Ele revive-la. Porém, utilizemos o mesmo esforço, alegre e contínuo, para nos prepararmos para o glorioso encontro com Deus, em sua morada eterna, após nossa partida deste mundo.

Que sintamos a força divina em nós e a utilizemos para promover as necessárias e verdadeiras mudanças em nosso ser e no mundo que nos cerca!
 
Tende piedade de mim, ó Deus, por teu amor!
Apaga minhas transgressões, por tua grande compaixão!
Lava-me inteiro da minha iniqüidade
e purifica-me do meu pecado!” (Sl 50)

Fiquem com Deus! 
Milton Menezes
Enviado por Milton Menezes em 22/02/2012
Código do texto: T3512933
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