A cura de um homem cego.
                           Evangelho do 6o domingo da Quaresma
                                 (Calendário Litúrgico Ortodoxo)
                         - Evangelho segundo São João / 13a semana -
 
Caminhando, viu Jesus um cego de nascença. Os seus discípulos indagaram dele: Mestre, quem pecou, este homem ou seus pais, para que nascesse cego? Jesus respondeu: Nem este pecou nem seus pais, mas é necessário que nele se manifestem as obras de Deus. Enquanto for dia, cumpre-me terminar as obras daquele que me enviou. Virá a noite, na qual já ninguém pode trabalhar. Por isso, enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo. Dito isso, cuspiu no chão, fez um pouco de lodo com a saliva e com o lodo ungiu os olhos do cego. Depois lhe disse: Vai, lava-te na piscina de Siloé (esta palavra significa emissário). O cego foi, lavou-se e voltou vendo. Então os vizinhos e aqueles que antes o tinham visto mendigar perguntavam: Não é este aquele que, sentado, mendigava? Respondiam alguns: É ele. Outros contestavam: De nenhum modo, é um parecido com ele. Ele, porém, dizia: Sou eu mesmo. Perguntaram-lhe, então: Como te foram abertos os olhos? Respondeu ele: Aquele homem que se chama Jesus fez lodo, ungiu-me os olhos e disse-me: Vai à piscina de Siloé e lava-te. Fui, lavei-me e vejo. Interrogaram-no: Onde está esse homem? Respondeu: Não o sei. Levaram então o que fora cego aos fariseus. Ora, era sábado quando Jesus fez o lodo e lhe abriu os olhos. Os fariseus indagaram dele novamente de que modo ficara vendo. Respondeu-lhes: Pôs-me lodo nos olhos, lavei-me e vejo. Diziam alguns dos fariseus: Este homem não é o enviado de Deus, pois não guarda sábado. Outros replicavam: Como pode um pecador fazer tais prodígios? E havia desacordo entre eles. Perguntaram ainda ao cego: Que dizes tu daquele que te abriu os olhos? É um profeta, respondeu ele. Mas os judeus não quiseram admitir que aquele homem tivesse sido cego e que tivesse recobrado a vista, até que chamaram seus pais. E os interrogaram: É este o vosso filho? Afirmais que ele nasceu cego? Pois como é que agora vê? Seus pais responderam: Sabemos que este é o nosso filho e que nasceu cego. Mas não sabemos como agora ficou vendo, nem quem lhe abriu os olhos. Perguntai-o a ele. Tem idade. Que ele mesmo explique. Seus pais disseram isso porque temiam os judeus, pois os judeus tinham ameaçado expulsar da sinagoga todo aquele que reconhecesse Jesus como o Cristo. Por isso é que seus pais responderam: Ele tem idade, perguntai-lho. Tornaram a chamar o homem que fora cego, dizendo-lhe: Dá glória a Deus! Nós sabemos que este homem é pecador. Disse-lhes ele: Se esse homem é pecador, não o sei... Sei apenas isto: sendo eu antes cego, agora vejo. Perguntaram-lhe ainda uma vez: Que foi que ele te fez? Como te abriu os olhos? Respondeu-lhes: Eu já vo-lo disse e não me destes ouvidos. Por que quereis tornar a ouvir? Quereis vós, porventura, tornar-vos também seus discípulos?... Então eles o cobriram de injúrias e lhe disseram: Tu que és discípulo dele! Nós somos discípulos de Moisés. Sabemos que Deus falou a Moisés, mas deste não sabemos de onde ele é. Respondeu aquele homem: O que é de admirar em tudo isso é que não saibais de onde ele é, e entretanto ele me abriu os olhos. Sabemos, porém, que Deus não ouve a pecadores, mas atende a quem lhe presta culto e faz a sua vontade. Jamais se ouviu dizer que alguém tenha aberto os olhos a um cego de nascença. Se esse homem não fosse de Deus, não poderia fazer nada. Responderam-lhe eles: Tu nasceste todo em pecado e nos ensinas?... E expulsaram-no. Jesus soube que o tinham expulsado e, havendo-o encontrado, perguntou-lhe: Crês no Filho do Homem? Respondeu ele: Quem é ele, Senhor, para que eu creia nele? Disse-lhe Jesus: Tu o vês, é o mesmo que fala contigo! Creio, Senhor, disse ele. E, prostrando-se, o adorou. Jesus então disse: Vim a este mundo para fazer uma discriminação: os que não vêem vejam, e os que vêem se tornem cegos. Alguns dos fariseus, que estavam com ele, ouviram-no e perguntaram-lhe: Também nós somos, acaso, cegos?... Respondeu-lhes Jesus: Se fôsseis cegos, não teríeis pecado, mas agora pretendeis ver, e o vosso pecado subsiste.” (Jo 9,1-41)
 
No Evangelho desse domingo, segundo o calendário litúrgico ortodoxo, mais uma vez, Jesus se apresenta como a luz do mundo. Luz disponível de forma indiscriminada, em todo tempo, em todo lugar e para todas as pessoas. Porém, é vista somente por aqueles que se reconhecem na escuridão, que assumem a sua cegueira, que desejam, com fé, iluminar-se, receber a luz do mundo, a verdadeira luz da vida.

O cego identificado no evangelho (Bar Timai) possui tal deficiência desde seu nascimento. Igualmente a todos nós que nascemos com nossa condição humana, limitada, finita, impedindo que nossa essência divina assuma a condução de nossa vida, permitindo que a graça de Deus seja plenamente revertida em ações, possibilitando mantermos Cristo vivo entre nós. Alguns “começam a ver”, aceitando, verdadeiramente, a presença de Deus em sua vida e outras permanecem cegas, fechando-se para o chamado divino. Tudo depende da atitude de cada um.

Jesus, ao identificar o cego, por iniciativa própria, decidiu aproximar-se dele e curá-lo. Da mesma forma, por estar próximo de nós, Ele nos “vê” e dispõe-se a abrir nossos olhos, dando-nos a luz, a Sua luz, a verdadeira luz. Cabe-nos, igualmente ao cego dessa passagem evangélica, aceitar o chamado de Cristo, oferecido a todos nós, de graça e indiscriminadamente, e entregarmo-nos a Ele, para que opere esse milagre em cada um de nós. Entregue, o cego permitiu que Jesus fizesse lama com Sua saliva a aplicasse em seus olhos, aceitando, passivamente, o convite divino e deixando que Deus nele operasse.

Entretanto, antes de concretizar sua ação, Jesus fora questionado por seus discípulos, argüindo-O se a razão daquela cegueira estava ligada ao pecado do próprio portador da deficiência ou de seus pais.

À época, era muito comum a idéia de que as doenças eram provenientes do castigo de Deus, em conseqüência do pecado. Jesus, com sua resposta, reafirmou o que os profetas já exortavam, em especial Jeremias e Ezequiel: os cegos não estaria pagando seus pecados ou de seus antepassados. “Nem ele, nem seus pais pecaram…”, disse Jesus, e nos ensinou, com isso, que os segredos da vida pertencem a Deus e se, fielmente, com Ele estivermos e a Ele nos entregarmos, certamente, nosso sofrimento por Ele será confortado.

Já foi dito que não há sofrimento que seja permitido por Deus que dele não se possa obter um bem maior. Não se pode esquecer que Deus é Pai e jamais castiga alguém. Essa era uma visão, limitada e contextualizada, compartilhada pelo povo de Israel, antes da vinda de Cristo ao mundo. O sofrimento faz parte da nossa natureza humana e não vem da vontade de Deus.

Especificamente, falando da cegueira, da cegueira espiritual, que foi, certamente, a intenção de Cristo nesta passagem, ela deve ser vista em escala maior. Ela não provém da subjetividade da pessoa, tampouco de sua hereditariedade, mas sim, das leis naturais. Independentemente do indivíduo, a cegueira espiritual é conseqüência das leis universais, pois todos nascemos cegos espiritualmente, referente à condição que nos torna criaturas limitadas, que nos torna seres humanos. Porém, pela essência divina que a nós é concedida, indiscriminadamente, existe, juntamente com a cegueira, o potencial de nos aproximarmos da Luz, que é graça de Deus.

Lembremo-nos das palavras de São Paulo aos coríntios:

Como está escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente (Gn 2,7); o segundo Adão é espírito vivificante. Mas não é o espiritual que vem primeiro, e sim o animal; o espiritual vem depois. O primeiro homem, tirado da terra, é terreno; o segundo veio do céu. Qual o homem terreno, tais os homens terrenos; e qual o homem celestial, tais os homens celestiais.Assim como reproduzimos em nós as feições do homem terreno, precisamos reproduzir as feições do homem celestial.” (I Cor 15,45-49)

Deus está sempre conosco, disponível para nos fortalecer, sustentar e possibilitar que tenhamos “suas feições”, basta aceita-Lo, basta vermos sua presença. Em diversas situações, a visão de Deus dá-se no sofrimento. A cegueira desaparece quando dela temos consciência, quando nos reconhecemos limitados, debilitados e fracos. Não foi a toa que Jesus afirmou que a cegueira daquele homem ocorrera para que as obras de Deus nele se manifestassem. Pela cegueira, aquele homem encontrara o Cristo Jesus e a ele foi permitido, não apenas ver a luz do dia, mas a própria luz de Deus e nela crer.

Jesus revela-se como a luz que veio iluminar os nossos caminhos. O cego de nascença nesse Evangelho, simboliza todos que vivem na escuridão, privados da “luz”, prisioneiros das coisas do mundo que os enceguecem para Deus, que os impede de vislumbrar a plenitude da vida. Ele nos convida a renunciar a “escuridão”, para que possa nos dar a luz transformadora, libertadora e salvadora.

Para que haja a ressurreição em nossa vida, faz-se necessário que carreguemos, com a ajuda de Cristo, a nossa cruz, e morramos para este mundo. Não há ressurreição sem morte, não há salvação sem cruz. Não confundamos, porém, a cruz, a morte e a ressurreição, com as alegrias e as tristezas deste mundo. Essa é uma reflexão mais profunda, que aponta para a vida eterna e gloriosa na paz do Senhor. Tudo neste mundo e deste mundo é passageiro, efêmero e transitório, tanto a tristeza, como a alegria.

Retornando à passagem bíblica narrada por São João, cabe a pergunta: por que a lama feita com a saliva e a terra do chão para untar o cego? A saliva, para os judeus, continha o espírito e, nesse caso, fora a água viva do Espírito Santo que se juntara à realidade do mundo (terra), dando ao cego a possibilidade de ver o mundo como realmente deve ser, por intermédio do Santo Espírito, pela luz de Deus.

Após a unção com lama, Jesus ordenou que o cego fosse lavar seus olhos na piscina de Siloé (que quer dizer Enviado). Essa era a piscina do Messias, do Enviado de Deus, podendo ser comparada com a piscina do Batismo, pela qual o Senhor “ilumina” o batizado, dando-lhe a verdadeira luz do mundo. Dessa forma, o homem, após lavar-se em tais águas, passou a enxergar.

Os verdadeiros cristãos, quando passam a “ver” com os olhos de Cristo a realidade do mundo, freqüentemente, pelo próprio mundo são afugentados, dele são expulsos, da mesma forma que o cego, após sua cura, fora expulso pelos fariseus da sinagoga. Da mesma forma que Cristo não é do mundo, todos aqueles que vêem com a Sua luz, também não o são, tendo assim, muita dificuldade de compartilhar das coisas do mundo com as pessoas que a ele estão aprisionadas.

Curado da cegueira, aquele que foi iluminado por Jesus, passa a ver com o olhar da fé uma realidade mais profunda, ele consegue ver e crer que Jesus é o Filho de Deus. Disse o recém curado a Jesus: “Eu creio, Senhor”, e prostrou-se diante de Jesus.

Os fariseus cegos espiritualmente, viam apenas que a cura tinha ocorrido no sábado e, por isso, o seu responsável não seria um enviado de Deus. Novamente, presenciamos a hipocrisia no pseudo respeito ao dia do Senhor, às Leis de Deus. Mais importante era a limitada interpretação das Leis, a adequação de suas normas, do que a possibilidade de se fazer o bem. Algumas atitudes de interesse próprio acabavam sendo permitidas nesse dia, como fora destacado pelo próprio Cristo, em diversas passagens bíblicas. Porém, ajudar os necessitados, curar os doentes não era permitido. Eles interessaram-se somente pela “indevida” ação de Jesus em um dia de sábado, sem qualquer atenção ao fato em si da cura de um deficiente.

Quantas vezes, assim como os fariseus, preocupamo-nos com a superficialidade das coisas, das ações, das posturas, das preces incorretas, dos ritos mal feitos, dos trajes inadequados, e nos esquecemos da própria espiritualidade, da força do Espírito presente, do conteúdo e da intenção da ação?

Para o cego curado, sua “nova visão” possibilitou-lhe reconhecer o poder de Deus em Jesus, identificação não possível aos cegos fariseus que, duros de coração, continuaram não querendo enxergar a presença divina no Filho de Deus.

O cego, nesta passagem evangélica, representa a escuridão da alma de cada mulher e cada homem, incapaz de ver a luz divina. Como conseqüência desta limitação, as pessoas deixam-se guiar pelas ilusões do mundo. Muitos preferem permanecer cegos, desdenhando a luz de Deus.

Muitos vivem nas trevas por não desejarem iluminar suas ações. Muitos, mesmo com a “lama” divina nos olhos, ungida pela graça de Deus, evitam o caminho da piscina de Siloé, pois, se passarem a ver com os olhos de Cristo, envergonhar-se-ão de suas ações. Diversas pessoas chegam a se alegrar ao ouvir a “voz” de Cristo em seu coração, ficam felizes de sentir a unção da saliva de Jesus em seus olhos, mas não conseguem se desvincular dos chamados mundanos que tanto lhes atrai, impossibilitando-lhes de se comprometerem, verdadeiramente, com Cristo.

A paz, a alegria e a felicidade efêmeras e ilusórias, propiciadas pelas coisas do mundo, são encantadoras e inebriantes, e acabam obstaculizando a visão humana para as coisas de Deus. Todos temos defeitos e limitação. Somos seres humanos. A visão da fé é conseqüência da graça divina que nos é dada, gratuitamente, a todos nós. Deus quer, por desejo próprio, “abrir nossos olhos”, dar-nos a luz. Oremos, pedindo forças ao Senhor, para que possamos usá-Lo como escudo, evitando que tais sedutoras atrações possam se interpor entre nós e Ele.

Cristo oferece-nos a Luz. Por que continuarmos a viver nas trevas?

Fiquem com Deus!

 
Milton Menezes
Enviado por Milton Menezes em 07/04/2011
Reeditado em 07/04/2011
Código do texto: T2895344
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