Reflexões sobre o Evangelho Segundo São João (3a semana)

“E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos sua glória, a glória que o Filho único recebe do seu Pai, cheio de graça e de verdade.” (Jo 1,14)

Eis aqui o núcleo central da espiritualidade, a base de nossa salvação – a Encarnação do Filho de Deus.

Neste momento, São João Evangelista traz o Verbo (Logus) do infinito para o presente, inclusive na própria construção escrita em grego, utilizando, não mais tempos verbais atemporais, como mencionamos no artigo anterior, mas sim, tempos verbais temporais definidos (ho Logos sarx egeneto => o Verbo se fez carne => tornar-se). Deus passa a existir como homem; Ele, de fato, está entre nós, como um de nós. Deus fez-se homem para estar fisicamente conosco!

Segundo o Bispo Kallistos Ware, de acordo com seu texto sobre “Deus e o homem”, diversos escritores orientais, ao refletirem sobre a Encarnação de Jesus, admitindo ser um ato de philanthropia (caridade) de Deus, dizem que, mesmo se não tivesse havido a “decadência do homem”, por amor pela humanidade, Deus teria se tornado homem, devendo, assim, ser entendida a Encarnação como “parte do propósito eterno de Deus”. Porém, por ter o homem decaído, a Encarnação, além de um ato de amor, foi, também, um ato de salvação.

Trazendo à tona os estudos do Dr. A. T. Robertson, em seu livro “The Minister and His Greek New Testament”, da forma que o evangelista João escreve, ele declara que no estado pré-encarnado o Logos era Deus e, com a Encarnação, o Logos tornou-se carne, e não o Pai. Mas o Logos encarnado era realmente “O Filho único, que está no seio do Pai”, tendo sido Ele, de fato, quem o revelou” (Jo 1:18). Dessa forma, jamais poderemos imaginar que, Jesus, ao se encarnar, passou a representar outro Deus, um segundo Deus além do Pai. É como deixa-nos Paulo, em sua carta aos Efésios,: “Há um só Senhor, uma só fé, um só batismo. Há um só Deus e Pai de todos, que atua acima de todos, por todos e em todos” (Ef. 4,5-6).

Como nos apresenta o Pe. Estevão Bettencourt O.S.B., em suas reflexões Cristológicas, quando se aplica a Jesus o título de “Filho de Deus”, o faz para significar identidade de natureza ou de substância do Filho com o Pai, fazendo com que o Filho (Jesus Cristo) seja uma das três Pessoas associadas nas fórmulas trinitárias – “Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28, 19) e “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós!” (2Cor 13, 13).

O Verbo, que era Deus (na verdade, sempre o foi!), ao se fazer carne e habitar entre nós, foi-nos dado “de presente” a presença de Deus vivo entre nós, trazendo-nos Jesus – Deus e homem. O Logos (Verbo) que se tornou carne e revelou o Deus invisível era um ser divino, Deus por natureza. É por isso que acreditamos na pessoa única e divina de Jesus, gerado por Maria (Theotókos = Mãe de Deus) e na Sua natureza divina e humana que se fundem. Não é a toa que cremos e oramos em nossa profissão de fé:

“(...) Jesus Cristo, filho unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos. Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado e não criado, consubstancial ao Pai, por quem tudo foi feito, o qual, por nós homens e para nossa salvação, desceu dos céus e se encarnou pelo Espírito Santo na Virgem Maria, mãe de Deus, e se fez homem.”

A Igreja Siríaca Ortodoxa vem sendo apontada como monofisista, ou seja, defensora da doutrina desenvolvida por Êutiques de Constantinopla, nos primeiros séculos do Cristianismo, que defendia a absorção da natureza humana de Jesus pela natureza divina, como o oceano absorve uma gotícula nele depositada. Com isso, em Jesus Cristo, além de haver uma só pessoa (divina), haveria, também, uma só natureza – a divina.

Ocorre que, acreditamos no sofrimento de Jesus por nós; na Sua dor na Santa Cruz para nossa redenção e salvação; na Sua ira ao ver os vendilhões no templo e, de lá, expulsá-los (Jo 2,15); na tristeza e na angústia de Cristo Jesus em Getsêmani (Mt 26, 36-39); no amor de Jesus por Marta, Maria e Lázar (Jo 11,5); na sede que teve na Cruz (Jo 19,28), e na Sua própria morte física apos exclamar que tudo estava consumado (Jo 19,30). Se cremos nestes e em diversos outros sentimentos humanos evidenciados em diversos momentos da vida de Jesus e narrados pelos Evangelistas, como poderíamos não acreditar na existência de uma natureza humana de Jesus? Como poderíamos acreditar que a natureza divina teria absorvido, por completo, sua natureza humana? Cremos nos sentimentos – sofrimentos, regozijos, amor, etc. – sentidos e demonstrados por Cristo Jesus enquanto homem, em nosso meio, da mesma forma que cremos na sua natureza divina, as quais, estão unidades em uma só pessoa (divina).

Entretanto, como um Deus vivo, mantendo sua natureza divina, associada à Sua natureza humana, poderia manter, separadamente, tais naturezas? Cremos, não no monofisismo, o qual a nossa Igreja sempre viu como herética, mas sim, na união das duas partes – divina e humana – para formar uma única e unificada Natureza de Cristo.

Acreditamos que a união completa e natural das Naturezas Divina e Humana em uma só Natureza é auto-evidente, de maneira a alcançar a salvação divina da humanidade. Dessa forma, ao mesmo tempo que acreditamos nos sofrimentos humanos de Cristo e, acima de tudo, na sua morte física e na subseqüente ressurreição, igualmente cremos que Ele manteve unida à natureza humana, à Sua natureza divina.

Acreditamos que a sua divindade e sua verdadeira humanidade nEle foram essencialmente unidas. Deus verdadeiro e homem verdadeiro, uma pessoa em duas naturezas, sem separação, nem confusão. Esta é, sobretudo, marcada por ser uma união natural e pessoal, livre de toda a separação, mistura, confusão, mudança e transformação. Como colocou o Bispo Theophan, o recluso: “Atrás do véu da carne de Cristo, os cristãos adoram o Deus triuno”.

Em suma, o Verbo (Logus) se fez carne e habitou entre nós para que, Deus, ao se fazer homem, como Filho de Deus, fosse possível a nós, homens, tornarmo-nos, de fato, filhos de Deus. Redimidos e içados das trevas, o verdadeiro Cristo permitiu-nos que, com ele, por intermédio de Seu Santo Espírito, pudéssemos ir ao Pai.

A possibilidade de restabelecermos a imagem e semelhança de Deus, assim como fomos criados, foi-nos dada pela encarnação do Verbo, basta agora, fazermos a nossa opção.

Para finalizar, trazemos para nossa reflexão as palavras de Santo Irineu (+202): “Em seu amor desmedido, Deus tornou-se o que somos para que pudéssemos nos tornar o que Ele é”.

Até a próxima semana, quando juntos, refletiremos sobre “a Luz que veio ao mundo”.

Milton Menezes
Enviado por Milton Menezes em 29/01/2011
Código do texto: T2760349
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